Dos Heróis, Super-heróis, Anti-heróis e das pessoas comuns (ou como o Prisioneiro nr. P50522 se tornou no actor mais bem pago da história do cinema)

Um dos rumores de “casting” mais engraçados que circulam na Internet (e se está na Internet tem de ser verdade) é aquele que conta que há 12 anos atrás o actor Tom Cruise esteve quase, quase a ser escolhido para interpretar o papel do “Homem de Ferro”.
Dizem as más línguas que a única coisa que impediu a contratação de Cruise (que a Marvel queria a todo o custo) foi uma simples questão de vaidade: para aceitar interpretar o Homem de Ferro, Cruise exigia uma coisa impensável: que durante o filme inteiro a sua cara estivesse sempre visível para o público (o que significava que a icónica máscara do “Homem de Ferro” teria que ser transparente para acomodar esta pretensão). Abalados e chocados com esta exigência os produtores do filme terão desistido de Tom Cruise.

Reza a lenda que o realizador do filme Jon Favreau, sugeriu então o nome do polémico Robert Downey Jr. para o papel ao que Marvel terá respondido: “Nunca! Jamais! Sob nenhuma circunstância estamos preparados para contratá-lo, por nenhum preço!”

Paciente, Favreau convenceu a Marvel a considerar Downey Jr. prometendo que ele faria pela sua saga o que Johnny Depp tinha feito por Piratas das Caraíbas: dar ao personagem uma energia e uma densidade que só poderia vir de um actor marginal forjado no cinema Indie. Downey Jr. fez um teste de casting, e a partir daí a Marvel já não pode considerar outros actores. Estava escolhido Tony Stark AKA o Homem de Ferro.

Nunca saberemos ao certo o que há de verdade nesta história (que os fãs do Universo Cinematográfico da Marvel adoram), mas facto comprovado é que em Abril de 2007 o jornal “USA Today” criticava assim a escolha polémica do então altamente polémico actor para o papel de Tony Stark:

Muito dificilmente um actor como Robert Downey Jr. seria uma escolha óbvia para interpretar um icónico combatente do crime.”

11 anos, 22 filmes, 20.3 billiões de dólares, mais tarde é difícil uma pessoa acreditar que alguém alguma vez escreveu uma coisa destas (sobre aquela que é provavelmente a escolha de casting mais inspirada de sempre). Mas a verdade é que na altura em que foi escolhido para interpretar o Homem de Ferro, o hoje em dia (quase) universalmente amado e incontestado RDJ era um actor com quem ninguém queria trabalhar, escolhido para interpretar o papel de um super-herói da Marvel que quase ninguém conhecia, num filme que muito pouca gente tinha interesse em ver.

Durante muitos anos, esta era a imagem que Hollywood (e o mundo) tinha de Robert Downey Jr: a do cadastro policial (foto tirada na primavera de 2001, quando ele foi preso por posse de drogas).

Toda a sua vida o grande talento natural para a representação de Downey JR. andou sempre de mãos dadas com a sua tendência para auto-destruição. O mesmo Actor que nos anos 80 a imprensa sentenciava que estava “destinado a ser o melhor actor da sua geração”, em 1996 aparecia nas capas dos jornais como “mais um viciado em drogas de Hollywood“. Em 2001 batia no fundo preso pela terceira vez o outrora nomeado a um Óscar da Academia por interpretar um inesquecível “Chaplin” ganhava oito centavos de dólar por hora esfregando tabuleiros de pizza. O “melhor actor de sua geração” era agora o prisioneiro nr. P50522. “Nunca contarei as piores coisas que me aconteceram na prisão” contará mais tarde RDJ.

É um facto que Hollywood adora as histórias de declínio e superação, mas nenhuma outra supera a história da vida real do actor da saga ‘Homem de Ferro’, ela própria digna de um filme da Disney.
Reza a lenda que no Dia da Independência de 2003, Downey Jr. parou num Burger King numa estrada da costa do Pacífico e enquanto comia um hambúrguer teve uma epifania. Decidiu que já chegava e atirou todas as suas drogas ao mar. Conta o próprio que o Pilates, a Filosofia Oriental, a Meditação, o Kung-fu canalizaram sua síndrome de abstinência, e a terapia e o amor da sua mulher Susan Downey ajudaram-no a ultrapassar o vício que ele descreveu como “ter uma caçadeira enfiada na boca e adorar o sabor do óleo que escorre da arma”.

Downey Jr. que aos 6 anos fumava o seu primeiro charro (oferecido pelo seu pai), aos 28 anos recebia a sua primeira nomeação para um Óscar e aos 31 acordava na prisão numa poça do seu próprio sangue é aos 54 anos um dos actores mais bem pagos da História do cinema. (Recebeu meio milhão de euros por Homem de Ferro, com um contrato que abrangia duas possíveis sequências, com as quais acabou por ganhar 9 milhões de euros e 28 milhões de euros respectivamente. Entre 2013 e 2015 ocupou o primeiro lugar na lista da revista Forbes, mantendo-se nas primeiras posições nos últimos anos. E após receber 75 milhões de dólares pelo recente Vingadores: Endgame, segundo cálculos de jornais como o “The Guardian”, provavelmente voltará a encabeçar a lista de 2019).

Apesar de hoje em dia a Marvel jurar a pés juntos que escolheu para o seu primeiro filme o personagem do Homem de Ferro porque “Tony Stark era uma personagem única e diferente de qualquer outra personagem que até à altura tinha sido trazida para o ecran“, sabemos que a verdade é um pouco diferente: em 2007, quando a Marvel fundou a sua própria produtora de cinema, não tinha os direitos das propriedades intelectuais dos super-heróis mais populares da altura (como o Homem-Aranha e os X-Men), de modo que escolheu o Homem de Ferro simplesmente porque naquela altura o empresário arrogante Tony Stark/Homem de Ferro parecia ser o super-herói mais moderno, verosímil e barato de produzir.

O resto é história. Contrariando todos os vaticínios, o filme Homem de Ferro foi um sucesso comercial e daria início aquele que é um dos franchises de maior sucesso do mundo cinematográfico da actualidade. O filme foi rodado sem um guião fixo (o realizador Favreau concebeu o filme “como se fosse Robert Altman a realizar um filme de super-heróis”) o que, permitiu a RDJ no papel do engenheiro, narcisista bilionário Stark improvisar muitas das suas falas e disparar as mesmas com a elegância e energia caótica de um músico de jazz. Downey Jr. agarrou o papel de Tony Stark com unhas e dentes com o seu charme e sarcasmo, personificando o carisma conflituoso de Stark deu também ao papel nuances de profundidade dramática e uma introspecção e um pathos que não se viam habitualmente num super-herói. Sempre na medida certa, a sua actuação acaba crescendo no decorrer do filme e demonstra, de maneira exímia, o brilho inerente à sua personagem. ( A máscara de ferro não conseguiu conter a personalidade de RDJ).

(Robert Downey Jr. in ‘Homem de Ferro’, 2008)

A audiência viu isso tudo e intuiu o resto: RDJ era Tony Stark e Tony Stark era RDJ (não se sabendo muito bem onde começa um e acaba o outro) e amou o Homem de Ferro talvez porque ao contrário dos super-heróis tradicionais ele era realista, relacionável, mas muito imperfeito e estava carregado de contradições (tal como o próprio Robert Downey Jr.)

Na antítese do Capitão América (ou do Super-Homem), o Homem de Ferro não era perfeito, nem heróico, nem tão pouco reflectia os valores mais elevados da sociedade americana.
Tony Stark (tal como RDJ) era sim o anti-herói perfeito – isto é, um protagonista que tinha aspectos da moralidade que tradicionalmente associamos aos antagonistas. Tão falho ou mais falho que um vilão, apesar de ser retratado com simpatia, ampliava as fragilidades da humanidade e tocava os espectadores com as suas fraquezas.

RDJ tal como Tony Stark cresceu sobre a luz dos holofotes, os seus erros e as suas falhas eram sempre publicas e largamente publicitadas e microscopicamente escrutinados pela imprensa e público. Ambos usavam uma Persona pública de arrogância, egoísmo, e auto-confiança excessiva como uma capa/ fachada para esconder as suas muitas inseguranças. Mas nenhum outro paralelismo biográfico entre personagem e actor é tão arrepiante como o da herança parental da masculinidade tóxica de ambos: nos livros de banda desenhada é Howard Stark o pai de Tony quem lhe oferece a primeira bebida da sua vida (e lhe transmite o “legado” do alcoolismo, a maldição dos Stark), na vida real foi o pai de Robert Downey Jr. quem o iniciou no consumo de drogas (a longa batalha da vida do actor) quando este tinha apenas 6 anos. “Quando eu e o meu pai nos drogávamos juntos, era como se ele tentasse expressar seu amor da única forma que sabia”, confessou o actor no livro The New Breed: Actors Coming of Age.

É essa herança da masculinidade tóxica de Tony Stark (a ideia cultural profundamente enraizada de uma masculinidade onde a força é tudo e as emoções são consideradas uma fraqueza) que tornam Tony Stark na personificação do que seria a ideia ocidental do que é um ” verdadeiro homem” um homem que é uma criança, narcisista, mimada, indulgente e privilegiada que está profundamente convencido que o mundo gira à sua volta. Até ao dia em que descobre que não gira. A verdadeira medida do carácter de um homem, descobre Tony Stark é tomar responsabilidade pelos seus actos.

Se quisermos intelectualizar o universo cinematográfico da Marvel ( e eu pessoalmente não quero outra coisa) podemos dizer que os Americanos gostam de se rever na imagem idealizada do Capitão América (um miúdo introvertido de Brooklyn que se torna grande para lutar e morrer por ideais de Verdade, Justiça e Liberdade), mas na realidade a América está muito melhor reflectida no arrogante bilionário, génio brilhante Tony Stark, com os seus imensos defeitos de carácter e passado obscuro como vendedor de armas, o produto de uma educação masculina tóxica (carregado de inseguranças e medo, obcecado com o domínio e a conquista).

O Capitão América é sempre idealmente virtuoso, justo e recto. Tem excelência moral de carácter e está comprometido com os mais altos princípios éticos. Por outro lado, Tony Stark, mesmo depois de se tornar num super-herói, ainda continua a ser um herói incompreendido, extremamente imperfeito, emocionalmente perturbado, cheio de dúvidas e conflitos interiores, a lutar contra a Ansiedade, ataques de pânico e stress pós-traumático, e ainda assim com toda esta bagagem emocional continua a ser sempre irritantemente persistente, altamente motivado e surpreendemente altruísta (ao ponto de dar a sua vida pelos outros sem hesitar).

Tudo isto faz dele um dos mais complexos e interessantes super-heróis da Marvel- e para mim, que não gosto nada de heróis ou super-heróis perfeitos foi um prazer absolutamente viciante e educativo ver o melhor e o pior da (minha ideia da) América reflectidos nele e como num espelho.

11 anos, 22 filmes e muitos billiões de dólares mais tarde, já pouco resta da ingenuidade, simplicidade e improviso do primeiro filme da Marvel. O Universo Cinematográfico da Marvel transformou-se numa perfeita afinada e super-potente máquina de Marketing, e Publicidade (e por muito que custe admitir a alguns bom cinema), mais perfeita que o Reactor Nuclear Compacto que esteve no peito de Tony Stark. Tem a sua Mitologia própria, a sua história e carrega o seu passado com orgulho. E o Homem de Ferro, o seu coração teve o arco narrativo perfeito e o desenvolvimento de personagem mais bem estruturado e bem construído que alguma vez foi dado a um super herói.

O carisma inefável de Downey Jr. que muitos reivindicam mas muito poucos têm, o seu “good look” americano (de ascendência irlandesa-russa e alemã- escocesa), e um mais que reconhecido talento de actor com “A” maiúsculo, conjugam-se para que ele seja uma das últimas grandes figuras de Hollywood das quais se pode dizer, como antes dele se disse de um Paul Newman ou de um Errol Flynn que têm uma espécie de universalidade, e grandeza maior que as personagens que interpretam e mesmo quando os filmes não são bons (e Homem de Ferro II e III ficam aquém) são magnéticos e tocantes e como só os grandes actores/estrelas conseguem ser.

No entanto, apesar do sucesso mundial, da superação dos vícios e dos muitos milhões na conta bancária havia uma vozinha na minha cabeça que teimava em considerar que o Homem de Ferro (e um punhado de outros grandes papéis, entre os meus preferidos os dos filmes: Chaplin; Zodiac; Tropic Thunder; Natural Born killers; Kiss kiss bang bang; The soloist; O detective cantor;) não chegavam para montra do talento de RDJ. Queria te-lo visto ainda em mais papéis poderosos e emblemáticos e especialmente a contrapelo da sua imagem, mas essa voz calou-se quando viu a sua cena final em Vingadores: Endgame.

Certamente não é Shakespeare,Tennessee Williams ou Beckett.
Mas é um actor completo num controle total da sua arte, num grande momento de interpretação, numa despedida peculiarmente filosófica e melancólica .
Naquela que é a sua cena final deste “mero” filme de super-heróis Downey Jr. torna-se maior que a sua personagem e absorve-a ao chamá-la a si e transforma o seu papel nos filmes da Marvel numa grande aula de representação. E nós só nos apercebemos que ele a deu quando a ficha técnica está a passar no final do filme e à espera da cena pós-crédito ouvimos o som de um metal a bater em metal, numa homenagem a Tony Stark quando este sequestrado por terroristas e prisioneiro numa caverna no Afeganistão, forjou a primeira armadura do Homem de Ferro.

(Novo filme ‘Spiderman- Far from home’: O mundo chora a morte do Homem de Ferro).

Se quiser (e estiver para isso) Robert Downey Jr. ainda tem muito para dar ao Cinema, mas mesmo que não faça mais nada, se for “só” este o seu legado, que tremendo legado.

Vingadores- Guerra do Infinito (como pode ser bom o grande cinema de entretenimento)

Não me recordo da última vez que entrei numa sala de Cinema com tanto receio de ver um filme (e não gostar).

Se calhar é porque me dizem que estou prestes a testemunhar um momento verdadeiramente histórico e apoteótico em termos de cinema de entretenimento. Ou porque fazem questão de me informar (diversas vezes) que “Infinity War/Guerra do Infinito” é o culminar de 10 anos de história no Universo Cinematográfico da Marvel. Estes factos não só não me impressionam muito, como não fazem nada para acalmar os meus receios, mas como tenho crianças vestidas com t-shirts do Capitão América e do Homem-Aranha sentados ao meu lado no cinema em grande excitação, tento disfarçar a minha descrença e falta de entusiasmo.

Contam-me também que este Guerra do Infinito é já o terceiro filme da saga dos Vingadores e esse facto ainda me deixa mais receosa – como não vi os outros filmes dos Vingadores não sei se vou conseguir apanhar a história que está para trás. Mas de facto, não tenho grande dificuldade em fazê-lo. Apesar de entrarmos no filme a meio de uma narrativa, a história não precisa de grandes introduções para se apanhar logo o fio à meada: há um Vilão (Thanos) que acabou de destruir o planeta-natal do Deus Trovão Thor para roubar a Pedra da Realidade e não descansará enquanto não tiver reunido todas as Pedras do Infinito além desta: Poder, Tempo, Mente, Espaço, e Alma. Quem conseguir reunir todas as Pedras possuirá o controlo total sobre o universo, obviamente todos os super-heróis da Marvel vão unir esforços para tentar impedir o vilão de o conseguir.

A céptica em mim simplesmente não acredita que vão caber ali naquele filme tantos super-heróis (26!), tantos efeitos especiais, tanta expectativa, e tanta história sem se atropelarem personagens, narrativas e universos.
São muitas incógnitas e muitas variáveis. É impossível isto resultar.

E este é o meu primeiro equívoco.
Com surpresa, admito que os 2 argumentistas de Guerra do Infinito (Christopher Markus e Stephen McFeely) são extremamente habilidosos na tarefa de equilibrar tantas figuras na história fazendo ali a única coisa que se pode fazer num caso como este: dividir os super-heróis em super-equipas que se juntam por força das circunstâncias e das necessidades. Dão as cartas, baralham e voltam a dar e conseguem que a narrativa flua de modo exemplar do drama, para a comédia, para a acção sem que nunca se perca o fio condutor da narrativa e sem que as personagens percam o humor característico de cada uma e principalmente, mantenham o respeito pelas personalidades/identidades previamente estabelecidas nos filmes em nome próprio (o que me parece um grande feito) e no caso de alguns deles como: Gamora, Ironman, Dr. Strange e Thor conseguem mesmo que haja um crescimento/desenvolvimento de personagem extremamente interessante e bem conseguido (outro dos grandes méritos do filme).
A fórmula para misturar todos estes ingredientes com equilíbrio, graça e inteligência parece fácil, e no entanto, o universo DC e o universo Star Wars não o conseguiram fazer!

As divisões de super-heróis em super-equipas (muitas vezes as mais improváveis como a equipa Thor/Rocket/Groot) causam interacções inéditas, sequências divertidissímas, piadas e diálogos hilariantes e fricções de personalidades extremamente engraçadas como Ironman/Dr.Strange, Thor/Quill e mais tarde Iron/Strange/Spiderman e os Guardiões da Galáxia que fazem rebentar o cinema de riso.

Ninguém fica esquecido e todos têm direito ao seu momento para brilhar na Guerra do Infinito. Até o manto da levitação do Dr. Strange, uma relíquia que é senciente (isto é, tem a capacidade de sentir sensações e sentimentos de forma consciente) e tem a sua personalidade, vontade-própria (foi ele que escolheu o “dono” Dr. Strange e não o contrário) demonstra as suas opiniões e lendário mau feitio ao fazer aquilo que quase todas as personagens no universo Marvel querem secretamente fazer (mas não se atrevem)- dar uma merecida palmada a Tony Stark/Ironman (Robert Downey Jr).

No momento em que a equipa Ironman/Dr. Strange/Spiderman entra em acção já estou a gostar do filme. Esta equipa que junta dois dos meus actores preferidos, tem o papel mais preponderante no filme (e será aquela que também terá os momentos dramáticos mais importantes). As interacções entre as 3 personagens são hilariantes: Ironman pergunta ao Feiticeiro Supremo Dr. Strange o que é que ele faz mais além de encher balões em festas de crianças, e Dr. Strange (naquela que é para mim a melhor piada do filme) pergunta a Ironman qual é exactamente a natureza da sua relação com o Homem Aranha, se ele é o seu “protegido”. Insinuando não só uma relação gay entre estes 2 mas fazendo também piada à DC (e à relação de Batman e Robin).

É grande a química entre RDJ e Cumberbatch e é difícil uma pessoa não se rir com choque de personalidades e embate dos egos gigantescos de Ironman e Dr. Strange- cada um a tentar provar que está menos impressionado com o outro do que realmente está- tal como é igualmente difícil não nos deixarmos contagiar pelo entusiasmo juvenil do Homem-Aranha (Tom Holland) por finalmente o deixarem pertencer aos Vingadores (e por estar numa nave espacial em forma de Donut, com o Ironman a tentar salvar o Dr. Strange e a pedra do tempo de um alienígena com cara de lula).

A partir desse momento do filme já não sei bem o que está a acontecer comigo porque quando o Capitão América tem a sua entrada triunfal à super-herói saindo da sombra para salvar Vision (que tem a Pedra da Mente)e Scarlett Witch) e a audiência no cinema desata a aplaudir esta entrada- eu em vez de rolar os olhos por essa manipulação óbvia dos Irmãos Russo – já estou a aplaudir com mais força que eles e quando T’Challa o jovem rei de Wakanda entra em cena, só uma grande força de vontade me impede de gritar “Wakanda Forever”.
Suponho que estou a ser vítima da magia do poder do Universo cinematográfico da Marvel.

Mas há muitas outras cenas deliciosas que se podem ver em ‘Infinity War’ , algumas grandiosas outras hilariantes que vale a pena listar porque se piscarmos os olhos corremos o risco de as perder:

– As dificuldades de “performance” de Hulk durante o filme inteiro;

– A piscadela de olho incrivelmente provocadora de Dr. Strange a Tony Stark e o esgar de resposta deste.
– A indignação “como te atreves a falar assim com o teu pai” do manto da Levitação de Dr. Strange quando o Homem-Aranha “responde” a Tony Stark;
– Ironman e Homem-Aranha salvarem Dr. Strange reencenando uma cena famosa do filme Alien;
– o medo que o Homem-Aranha tem de extra-terrestres;
– Os ciúmes que Peter Quill tem da masculinidade de Thor;
– Groot a sacrificar um braço para salvar Thor e o seu martelo;

– As tentativas frustradas de Tony Stark para liderar e organizar uma estratégia e um plano de ataque com os caóticos e desorganizados Guardiões da Galáxia;

– Toda e qualquer cena em que entram os Guardiões da Galáxia;

O meu segundo equívoco foi acreditar que num filme de super-heróis, o vilão roxo Thanos não teria grande profundidade ou densidade psicológica. Outro engano porque os escritores e realizadores de Infinity War esfalfaram-se à séria para garantir que Thanos(Josh Brolin) fosse mais que o óbvio e previsível vilão mauzão unidimensional dos desenhos animados (que seria tão fácil meter aqui).
Não só em termos de utilização do CGI- Thanos é uma personagem visualmente tão “real” quanto as outras personagens humanas- mas principalmente pelo estudo de carácter e personalidade, que pretende fazer-nos entender as razões e motivações que estão por trás do seu comportamento. É muito pouco habitual ter-se este cuidado e preocupação num filme de super-heróis. (Parece óbvio e fácil mas lembremo-nos que o filme que ganhou este ano Oscar de melhor filme do ano “A forma da água” não o conseguiu). Por isso uma grande vénia ao Vilão Thanos- não só um grande vilão Marvel mas certamente um dos mais interessantes que se viram nos últimos anos no cinema.

E é esta a verdade sobre Guerra do Infinito: mesmo quem não seja fã dos 18 filmes Marvel, desconheça toda a história anterior do seu Universo Cinematográfico e nunca tenha visto um único filme de super-heróis na sua vida terá muita dificuldade em não gostar (nem que seja só um bocadinho) desta Guerra do Infinito. Simplesmente não é possível servirem-nos um filme de entretenimento deste calibre, a esta escala monumental, com este cuidado e rigor narrativo, com esta inteligência nos diálogos e nas piadas sem que nos arranquem no mínimo um sorriso e uma gargalhada sincera e na melhor das hipóteses sem que nos façam gostar destas personagens e sofrer com elas.

Eu que não sabia praticamente nada sobre a Marvel, confesso que sofri por Tony Stark/Ironman (o homem que tem tudo e não tem nada) que vi confessar no início do filme que quer ter um filho e vi acabar o filme com o seu filho adoptivo a morrer-lhe nos braços.

Vi o vilão Thanos sacrificar a vida da sua filha por uma Pedra, o que reflecte a acção oposta do Dr. Strange que sacrifica uma Pedra para salvar uma vida (a de Tony Stark) e tendo ainda visto os 14.000.605 cenários possíveis futuros sacrifica-se a si próprio para salvar o Universo. (Espero que depois disto a Ben and Jerry’s tenha a cortesia de criar um sabor de gelado com o nome dele, que seja mais delicioso que o ‘Stark Raving Hazelnuts’ ou o ‘Hulk-A-Hulk-A-Burning-Fudge’ juntos!).

De facto sei muito pouco sobre este universo mas sei o suficiente sobre histórias para saber que essas grandes decisões e escolhas morais interessantes serão absolutamente decisivas e importantes no próximo filme dos Vingadores e a longo prazo farão os Vingadores ganhar a Guerra contra Thanos.

Por último, sei que se o multi-milionário Tony Stark, CEO da empresa Stark Industries tivesse tentado explicar a Thanos que a transformação das sociedades é feita através da distribuição equilibrada de riquezas, recursos e propriedades e não através do Genocídio selectivo talvez se tivessem evitado todas estas chatices.
Mas nesse caso, eu também não me teria divertido tanto quanto é possível uma pessoa divertir-se numa sala de cinema, nem nunca teria visto um filme de super-heróis que me fizesse ficar a pensar tanto nele depois de o ver e a ponderar em todas as suas questões morais, sociais e filosóficas

À sexta estou… a celebrar o Halloween revisitando o clássico dos clássicos de terror: Drácula de Bram Stoker (o livro e o filme)

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Clássico absoluto da literatura “Drácula” é um romance escrito em 1897 pelo autor irlandês Bram Stoker. Esta história de suspense e terror, tem como protagonista um dos personagens mais terríveis que nasceram na literatura: o famoso conde Drácula, uma criatura trágica e nocturna que se alimenta do sangue dos vivos.
A história tem início quando o solicitador Jonathan Harker chega a um castelo numa zona remota da Transilvânia e trava conhecimento com o proprietário do castelo, o excêntrico conde Drácula. Aos poucos Harker percebe que mais do que excêntrico, há algo de realmente assustador e tenebroso no seu anfitrião e… terão de ler o livro para saber o resto.

Muitas vezes copiado, citado, visitado e revisitado “Drácula” é o mais famoso, popular e amado de todos os livros de vampiros da história da literatura.
À época da sua publicação alguns leitores descreveram o livro como sendo “o romance de gelar o sangue do século”!
Isso era tão verdade há 118 anos atrás como ainda é hoje.

NOTA: O livro está em domínio público e pode ser obtido gratuitamente on line em Inglês.

Se preferirem ver um filme, podem escolher antes a sua adaptação cinematográfica realizada em 1992 por Francis Ford Coppola, um filme que é uma verdadeira festa para os olhos.

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Apesar de ser criticado por alguns puristas por contar uma história de amor que não está no livro (Coppola colocou como foco central do filme a história de amor entre Drácula e a personagem Mina Harker) a autora deste post gostou muito desse twist inesperado e aplaude essa concessão aos tempos modernos.

Compreendamos que a natureza “monstruosa” do Drácula original era por si só suficientemente interessante para o público do séc. XIX porque reflectia o lado sombrio da era extremamente moralista em que foi originalmente escrito.
Mas nós os leitores e cinéfilos do século XX e XXI, ao contrário dos da época Vitoriana, somos menos moralistas, mais tolerantes e complexos, gostamos de perceber o que realmente se esconde por trás do coração de um monstro e porque é que ele é da maneira como é ( ou se calhar somos é uns grandes choninhas que nos derretemos todos quando Drácula diz a Mina que atravessou oceanos de tempo para estar com ela).

Reza a história que Coppola terá sido atraído pelos elementos sensuais do argumento e quis que muitas partes da história do filme se assemelhassem a um sonho erótico. Ao conceber o filme pediu aos Figurinistas que lhe dessem designs “estranhos” saídos dos seus próprios pesadelos!
Também insistiu que não queria usar nenhuma espécie de efeitos especiais contemporâneos e nem imagens geradas por computador, preferindo usar efeitos técnicos antiquados(como os que eram usados nos primórdios do cinema) e tudo isto contribuiu para tornar Drácula num portentoso objecto de culto.

“Drácula de Bram Stoker” tem também um elenco excepcional com Gary Oldman no papel do conde Drácula, Winona Ryder(como Mina Harker), Sir Anthony Hopkins(como o caçador de vampiros Van Helsing) e Keanu Reeves(como Jonathan Harker) e curiosamente o cantor Tom Waits como Renfield.

Apesar do “overacting” de Anthony Hopkins, do “no acting” de Keanu Reeves (duramente criticado na altura) e do “overreacting” de Gary Oldman (que o resto do elenco dizia que era um colega insuportável, porque -como bom actor do Método – durante todo o tempo em que duraram as filmagens NUNCA, saía da personagem de Drácula) ou se calhar por causa disso tudo, o filme resulta numa delícia de excessos visuais, uma obra-prima gótica concebida com o amor, a loucura e o cuidado estético e conceptual de um génio cinematográfico e que nos bate com a mesma força de 1 copo de absinto (essa bebida amada dos artistas franceses do séc. XIX também conhecida popularmente por fada verde em virtude de provocar um suposto efeito alucinógeno) bebida que, aliás o próprio Drácula oferece a Mina no filme.

Tanto o livro como o filme estão actualíssimos e suponho que enquanto houver desejos corruptos, selvagens e moralmente ambíguos que continuem a atormentar a condição humana estarão sempre!

Feliz Halloween! Bons sustos!

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Mad Max: Fury Road – Apertem os cintos e agarrem-se bem aos vossos lugares, está aqui um dos grandes filmes de 2015.

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O denominado género “acção” é um género de cinema que eu não aprecio particularmente e porque não dizê-lo, tento evitar a todo o custo. Tão pouco sou apreciadora das versões originais de “Mad Max” com Mel Gibson. À partida, não seria muito provável que eu visse um filme de acção desta saga que revisita este universo pós-apocalíptico, já explorado nos anos 80 e pelo mesmo realizador, George Miller.
No entanto, assim que o filme estreia cria um culto imenso à sua volta. Público e crítica louvam a sua inovação, e a sua ruptura com o género. A minha curiosidade é aguçada. Decido ignorar os meus preconceitos e resolvo dar uma oportunidade a “Mad Max”, para tentar perceber o que é que o filme tem de tão especial para merecer toda a atenção que gerou. E de facto, depois de o ver confesso que não gostei do filme, adorei-o.

*SPOILER ALERT*:
A partir daqui leia por sua conta e risco

“Mad Max: Fury Road” será com certeza um portentoso filme de acção/perseguição automóvel (provavelmente um dos melhores feitos dentro do género). Os avanços tecnológicos actuais das câmaras de filmar permitem ao experiente George Miller sequências e planos cinematográficos fantásticos (na estrada onde ele adora estar) e que resultam num delírio visual imparável e num ritmo alucinante nas suas 2 horas de duração.

Mas o que é verdadeiramente surpreendente em “Mad Max” é o seu contéudo sério, que aborda com muita inteligência e habilidade temáticas actualissimas como a exploração sexual das mulheres, o uso da força armada para a utilização indevida dos recursos naturais da terra em proveito próprio, a opressão dos mais fracos, a utilização de crianças-soldado na guerra e a escravatura humana.

No exacto momento do filme em que Furiosa (Charlize Theron) muda a direcção do camião saindo da estrada, não é só ela que está a desafiar o sistema. O próprio realizador George Miller começa ali a subverter todas – e são mesmo todas – as “regras” usuais do filme de acção típico de Hollywood, borrifando-se no Status Quo, quer em termos de narrativa, estrutura, personagens, e heróis e ao contrário do que é usual no cinema de acção virando o foco de atenção do filme para as mulheres.

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São elas as maiores vítimas do sistema económico-social no mundo pós-apocaliptico do filme. O tirano que é desafiado, é-o porque roubou a fonte da vida à natureza (desviando o recurso natural mais precioso do mundo a água potável) e porque usa as mulheres que mantém em cativeiro (pela sua capacidade de gerar a vida e alimentar) objectificando-as e despojando-as da sua condição humana.

“Mad Max” torna-se assim numa magnifíca história de luta, superação e redenção para os diversos tipos de “heróis” improváveis e atípicos que o povoam:

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Furiosa (Charlize Theron) tem o heroismo relutante de quem não procura o poder ou a glória mas sabe que se não for ela não há mais ninguém para salvar as mulheres.

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Nux (Nicholas Hoult) o rapaz-soldado que apesar de ter sido criado a acreditar cegamente que a imortalidade se conquista com uma morte gloriosa no campo de batalha para alcançar o Valhala(*), quando morre Nux dá a vida por amor e não por glória e paradoxalmente, é ali ao morrer que ele recupera a sua vida.

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E por fim o herói que dá nome ao filme: Mad Max (Tom Hardy).
Eis o “herói” masculino do filme de George Miller personificado em Tom Hardy em toda a sua glória: um homem que não teme a emasculação e que não vê o mundo dividido em dicotomias homem/mulher, mas sim em opressor/oprimido. Um homem que no início do filme perdeu a sua humanidade e age como um animal enjaulado movido somente pela sua necessidade de sobrevivência e que no fim do filme descobre em si generosidade, compaixão, colocando as necessidades dos outros acima das suas.

Tom Hardy é um dos maiores actores da sua geração e já tem uma mão cheia de grandes personagens no currículo, mas nunca foi tão grandioso e tão icónico como no belíssimo momento final do filme em que sai de cena silenciosamente para dar todo o protagonismo à personagem de Charlize Theron (Furiosa), acção que me trouxe à memória a frase famosa de Mário Rodrigues Luis Cobos:
“Nada acima do ser humano e nenhum humano abaixo de outro”

E isto, minhas senhoras e meus senhores não é Feminismo, é Humanismo!

Contra todas as probabilidades e todas as expectativas aqui temos sem dúvida aquele que é um dos grandes filmes de 2015. Absolutamente recomendável e imperdível!

(2015)
“Mad Max: Fury Road” (original title)
M/14| 120 min| Action, Adventure, Sci-Fi|

(*) Valhala-(“Salão dos Mortos”, que na mitologia nórdica e para os guerreiros vikings era um grande salão situado em Asgard, dominado pelo deus Odin)

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A complexa metafísica transcendente dos zigomas salientes de Benedict Cumberbatch

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(No verão de 2013, durante as filmagens da terceira série de Sherlock o actor Inglês Benedict Cumberbatch estava no auge da fama e da popularidade. Cansado com a atenção dos fãs que acampavam à porta dos locais de filmagens da série e desesperado com as perseguições dos paparazzi que procuravam todas as oportunidades para o fotografar, começou a tapar a cara com folhas de papel tamanho A4 onde escrevia frases implorando-lhes que parassem de o fotografar a ele e que prestassem mais atenção a assuntos importantes que estavam a acontecer no mundo ( como os massacres no Egipto).

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Alguns dias mais tarde, em Agosto de 2013 o parceiro do jornalista Glen Greenwald, David Miranda era detido pela polícia no Aeroporto de Heathrow em Londres durante 9 horas, ao abrigo da lei britânica antiterrorista – “Schedule 7 of Terrorism Act 2000” (o equivalente britânico do Patrioct Act americano) que permite que qualquer cidadão acusado de terrorismo possa ser detido sem uma acusação formal e a sua propriedade privada confiscada – no caso do jornalista, o computador, o telemóvel, pens e hard-drives).
A ilícita detenção do jornalista chocou a opinião pública por se considerar que David Miranda tinha sido vítima de uma injustificada táctica de vingança contra Glen Greenwald (porque este jornalista tinha informações passadas por Edward Snowden e tinha escrito sobre a NSA- National Security Agency e sobre a conivência do governo britânico com o sistema de vigilância global através do serviço de inteligência britânico GCHQ-Government Communications Headquarters.)
Indignado com a detenção de David Miranda, com os abusos de poder sistemáticos e com várias acções repressivas do seu Governo à imprensa livre, Benedict  (que é assumidamente da velha guarda e não está presente em nome próprio em nenhuma das redes sociais mais conhecidas Facebook, Tumblr, Twitter) escreveria à mão uma mensagem de 4 páginas em papel que mostrou aos paparazzi que o perseguiam e onde interpelava directamente os dirigentes do seu país, e culminava na pergunta pertinente:  “Schedule 7: Esta violação das liberdades civis, está mesmo a fazer-nos ganhar a guerra ao terrorismo?”

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Essa hábil utilização da celebridade e da atenção mediática como plataforma para um protesto politico silencioso era duplamente inteligente da sua parte, porque sendo escritas (e não faladas) as palavras não podiam ser distorcidas ou mal citadas nos media, e além disso, quem quer que publicasse as fotos ( imprensa cor-de-rosa, meio de comunicação sério ou site de bisbilhotices) era obrigado a divulgar a sua mensagem.
Quando uma parte da opinião pública reagiu, caindo inevitavelmente em cima de Benedict com críticas de superioridade condescendente e paternalista que o acusavam de ser “apenas um actor que devia estar mas era quietinho” , eu lembrei-me da canção “Samson” que Regina Spektor escreveu sobre o herói bíblico Sansão ( esse cuja força sobre humana se devia ao cabelo comprido) e que por estranhas e misteriosas associações livres da minha imaginação hiperactiva sempre associei a Benedict Cumberbatch:  “You are my sweetest downfall/I loved you first/ Beneath the sheets of paper lies my truth”
E não consegui evitar sorrir.)

Benedict Timothy Carlton Cumberbatch (nascido em Londres a 19 de Julho de 1976) já tinha uma longa e profícua carreira cimentada na televisão britânica, no teatro, e na rádio BBC quando o papel de Sherlock Holmes tornou o seu nome mundialmente conhecido. Consciente da mudança de estatuto que poderia advir do facto de aceitar interpretar um papel dessa magnitude, o actor debateu-se interiormente com essa escolha receando a sobreexposição e a fama. Os seus receios tinham razão de ser. Quando o mundo viu a sua (agora célebre) primeira cena na série “Sherlock” – que mostra o Holmes de Benedict a chicotear violentamente um cadáver que acabara de chegar à morgue do Hospital de Saint Barts, para testar as feridas que apareceriam nas horas seguintes no corpo, porque disso dependia o álibi de um homem – nascia uma estrela.

image Sherlock Holmes

Benedict que perdeu cerca de uma dezena de quilos para interpretar Sherlock Holmes, porque queria que a personagem fosse representativa da ideia “a mente que triunfa sobre a matéria” é um “workaholic”, perfeccionista e um camaleão que se transfigura completamente nas personagens que interpreta, de tal modo que se torna fisicamente irreconhecível.
Antes de Sherlock Holmes já tinha interpretado outro punhado de génios: Stephen Hawking (Hawking, 2004), William Pitt the young (o primeiro-ministro mais jovem da história da Inglaterra, em Amazing Grace 2006), Van Gogh( Painted with words, 2010), e depois de Sherlock Holmes já foi também o génio informático Julian Assange (O quinto poder, 2012), o complexo herói sofrido Christopher Tietjens (Parade’s End, 2012) e o injustiçado matemático Inglês Alan Turing (O Jogo da Imitação, 2014) (aquele que muitos consideram o melhor papel da sua carreira até à data, e com o qual obteve uma merecida nomeação para óscar de melhor actor este ano).

Benedict soube gerir a sua imagem e o “hype” que se criou à sua volta com muita perspicácia. Dono de uma personalidade cativante, de uma inteligência acima da média e de um sentido de humor desconcertante, o actor soube projectar um equilíbrio perfeito entre a dose certa de provocação e timidez, inteligência espirituosa e sentido de humor auto-depreciativo, inacessibilidade e aproximação honesta, e um certo charme britânico inato que o transformaram no menino de ouro da Inglaterra e num estranho fenómeno de popularidade online.
Benedict que nunca fez nenhum papel romântico e está muito longe de se enquadrar nos convencionais padrões de beleza masculinos (a sua cara já foi comparada a um sapato, a um extra-terrestre e a um lagarto) viu-se, para seu grande espanto de uma hora para a outra transformado num símbolo sexual, ideia que ele tentou desencorajar referindo que essa percepção das pessoas não é mais que “um reflexo do seu trabalho”. Com o seu sentido de humor habitual confessou que ele próprio longe de se achar sexy, sempre se considerou muito parecido com o preguiça Sid do filme “A idade do Gelo”, e fisicamente acha-se estranho, esquisito e desproporcional.

Mas esta opinião não é partilhada pelo seu exército de fãs devotas online (dos 8 aos 88 anos) que discutem infinitamente os seus atributos e seguem cada um dos seus passos e que se denominam de Cumbercookies, Cumbercollective e com mais de 123.000 seguidores no Twitter, o mais notório dos seus grupos de fãs denomina-se para grande consternação de Cumberbatch  de ‘Cumberbitches’. (Benedict já disse detestar o termo “bitches” por achar tratar-se de um recuo de vários anos no Feminismo” e já referiu que este termo é para ele inaceitável – ainda que seja utilizado numa palavra inventada em tons de brincadeira em sua honra).
Mas foi toda esta base de fãs, leal, devota e extremamente protectora que o transformou no incontestável namorado da internet. É ela que esgota num único dia,  e 1 ano antes do evento acontecer  os 100.000 bilhetes disponíveis para todas as representações da peça de teatro “Hamlet” de William Shakespeare que será protagonizada por ele, durante os 4 meses (Agosto a Outubro de 2015) em que estará em cena, no teatro Barbican em Londres – tornando-o na produção teatral mais procurada de todos os tempos.
Paradoxalmente, também é esta base de fãs com o seu culto, que cria à sua volta uma loucura e uma histeria tão grandes, e ensurdecedoras que muitas pessoas mais distraídas correm o risco de não se conseguirem aperceber que Benedict Cumberbatch é na sua essência mais profunda um actor sério dotado de um inquestionável talento.

Esse talento viram alguns realizadores como Steven Spielberg quando o escolheu para o elenco do filme “Cavalo de Guerra” (2011), e Danny Boyle na aclamada produção teatral “Frankenstein”(2011) peça de teatro onde Benedict Cumberbatch e o actor Jonny Lee Miller, interpretavam ambos os 2 papéis principais: o Dr. Frankenstein e a sua criatura/monstro, e em cada noite trocavam de papel ora interpretando a criatura, ora o criador, sem que a audiência soubesse qual deles iria ver em qual papel ( ambos receberam largados elogios e prémios pelas suas interpretações).

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Esse talento imparável viu também Sir Tom Stoppard o maior dramaturgo Inglês da actualidade, que durante meses cortejou Benedict timida mas persistentemente para ele aceitar interpretar o papel de Christopher Tietjens quando adaptou a obra literária Parade’s End do escritor Ford Maddox Ford para uma mini-série de tv. Até uma certa altura na sua carreira (não sei se ainda é verdade hoje), de todas as personagens que tinha interpretado, Tietjens era a preferida de Benedict e seria ainda a minha (se não o tivesse visto como Alan Turing). Nunca como nesse papel Benedict tinha sido tão complexo e torturado. Nunca como até aí essas características que o definem como actor foram tão visíveis: a desarmante limpidez no olhar, a insegurança segura, a vulnerabilidade encoberta, a dor da perda e a repressão das paixões e das emoções.

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E depois temos a sua voz. Muito provavelmente a voz masculina mais extraordinária e admirável que se pode ouvir actualmente no cinema e/ou na televisão. Um arrepio sonoro, timbre de barítono profundo,  uma voz aveludada rarissima, belissima e perverssissima a articular todas as promessas e todas as ameaças. Por mais espectacular que seja a visão do actor- e a visão é espectacular- por vezes apetece fechar os olhos e ficar apenas a ouvi-lo.
Por essa voz se encantou o realizador Peter Jackson que o escolheu para encarnar o dragão Smaug na trilogia “O Hobbit” e até J. J. Abrams o realizador americano que perceberá mais de franchises do que de cinema, mas que (provavelmente sem o saber) tomou à letra a frase de Alfred Hitchcock que dizia que “um filme é tão melhor quanto pior for o seu vilão” e o escolheu para o papel de Khan no seu “Star Trek- Into darkness”(2012) – e dizem alguns que viram que Benedict rouba todas as cenas em que entra.

Depois seria Alan Turing – o brilhante matemático inglês, pai da informática, e da inteligência artificial, criptoanalista genial que decifrou os códigos das mensagens das máquinas Enigma alemãs na II Guerra Mundial e a quem o Governo Inglês tratou de forma vergonhosa e indigna e perseguiu pela sua homossexualidade,  forçando-o à castração química e levando-o ao suicídio.

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Benedict leu o argumento, apaixonou-se pela personagem e abraçou carinhosamente o projecto sentindo que tinha que fazer justiça ao intelectual inadaptado. A sua interpretação tem a ternura, o afastamento, e a neurose, a solidão e várias nuances de dor e todas as emoções colocadas com grande delicadeza e utilizados com imensa eficácia e um julgamento admirável, como é habitual em Cumberbatch. Teve o reconhecimento da crítica, e do público e nomeações para todos os prémios importantes da época. Perdeu tudo para o seu amigo Eddie Redmayne (que interpretou Stephen Hawking, este sim um homem tão grandioso que o actor que o interpreta corre o risco de ser confundido com ele).

Em 2016 continuará a espalhar o seu charme obscuro no cinema onde encarnará o herói da Marvel Dr. Strange, e na televisão onde será Ricardo III na BBC 2 e novamente Sherlock Holmes na BBC1 e em Agosto deste ano estará no teatro onde será finalmente o príncipe Hamlet o papel de sonho de qualquer actor e um papel pelo qual ele confessou que esperou a sua vida toda.

Nos muitos anos em que segui a sua carreira vi-o viver dezenas de vidas e morrer outras tantas. Vi-o chorar, rir, dançar e cantar, fazer coisas vergonhosas e coisas sublimes. Vivi as suas paixões e as suas dores, vi-o beijar e lutar. E ele fez-me bem e mal, amar e odiar, chorar e rir. E partiu-me o coração várias vezes. Não sei explicar o que há de tão especial em Benedict Cumberbatch, mas há algo de transcendente e inqualificável que é caracteristico dos grandes actores, uma generosa abertura a todas as possibilidades da vida.

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Nos primeiros dias do verão de 2015, dois anos depois do protesto político silencioso contra o “Terrorist Act” vi outra fotografia sua tirada por um paparazzi e chocou-me a sua expressão resignada e derrotada. Fiquei triste por Benedict Cumberbatch. Tive pena que ele não tivesse nascido actor noutro tempo e noutra época. Talvez tivesse morrido na obscuridade e o seu talento tespiano só fosse testemunhado por um punhado de pessoas num teatro bafiento no West-end londrino. Provavelmente ter-lhe-ia passado ao lado a grande carreira internacional que ele está destinado a ter.
Mas, por outro lado talvez também não fosse caçado como um animal pelos fãs e pelos paparazzi como é hoje em dia.
Talvez não fosse o herói contrariado dessa geração selfie que com a mesma rapidez que o eleva aos píncaros se virará contra ele e o trocará pelo novo “it-boy” no exacto momento em que ele tenha a audácia de não corresponder a alguma das expectativas irrealistas que projectaram nele. Talvez nunca conseguisse o reconhecimento dos seus pares com uma nomeação para os óscares mas também nunca seria obrigado a ver detalhes da sua vida privada -que até ao momento da campanha dos óscares ele sempre tinha guardado com a ferocidade de um leão- escarrapachados nos tabloids ingleses. E pensei outra vez na canção da Regina Spektor:
Samson went back to bed
Not much hair left on his head
Ate a slice of wonderbread and went right back to bed
Oh, we couldn’t bring the columns down
Yeah we couldn’t destroy a single one”

Mas desta vez já não consegui sorrir.

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A ressurreição ou a vida depois da morte dos Death From Above 1979

Não foi ao terceiro dia, mas sim cinco anos após a sua separação, que os Death From Above 1979 (DFA79) ressuscitaram para um regresso há muito sonhado pelos fãs da banda canadiana fenómeno de Toronto de dance-punk-noise-rock. O documentário Life After Death From Above 1979, estreado em Outubro de 2014 e que passou pela edição deste ano do Indie Lisboa no Cinema São Jorge, é um retrato cru e directo de como a música uniu, separou e reuniu, os amigos de infância Jesse Keleer e Sebastian Grainger, baixista e baterista/vocalista, respectivamente, do duo DFA79, a banda que no início da década dos noughties rasgou a atmosfera musical como um meteorito, que teve tanto de brilho como de fugaz.

São as cenas do motim e do tumulto criado pelo público no concerto surpresa de reunião da banda, no festival SxSW (South by Southwest) de 2011, em Austin no Texas, que dão o mote para o início do documentário e que revelam um pouco do fenómeno que são os DFA79. Em completo descontrolo os fãs derrubam barreiras policiais para tentar ver o impossível, o regresso inesperado da banda aos palcos, num concerto de aquecimento para o mítico festival de música americano Coachella na Califórnia, que se seguiria semanas após e que foi o motivo para o regresso da banda, após cinco anos de separação e de projectos a solo, musicalmente e esteticamente muito diferentes dos DFA79. O baixista Jesse Keleer terá sido o que mais se afastou do som dos DFA79 após a ruptura explorando a sua veia electrónica, juntamente com Al-P, antigo produtor da banda, formou o duo MSTRKRFT (pronunciado como “Master-craft”), banda que encontrou grande sucesso no universo EDM (Electronic Dance Music). E se o caminho da electro house seguido por Jesse desiludiu muitos dos fãs do rock de atitude punk dos DFA79, a coisa não correu muito melhor ao baterista e vocalista Sebastian Grainger que parece ter desaparecido completamente do mapa quando encontrou conforto no indie rock banal do seu álbum a solo Sebastian Grainger & The Mountains.

A separação aconteceu em 2006, apanhando os fãs de surpresa, já que o ano anterior tinha sido de consagração quando os DFA79 eram apelidados pela imprensa musical como the next big thing, após o álbum estreia You’re a Woman, I’m a Machine de 2004, trabalho amplamente elogiado e fresco, o chamado break-up album, porque até os rapazes mais punks e duros têm por vezes o coraçãDeath From Above 1979o partido. Entre 2001 e 2005 deram 546 concertos, estiveram em tour nos Estados Unidos com os gigantes Queens of The Stone Age e os Nine Inch Nails e cruzaram oceanos até à Europa e Ásia, estabelecendo uma curiosa base de fãs no Japão. Começaram como tantas outras bandas, dois amigos que chegados àquela idade em que todos os jovens têm de decidir o seu futuro, escolheram o menos seguro: formar uma banda. O nome surgiu de uma t-shirt com o lema dos pára-quedistas de guerra e o 1979, ano de nascimento de Sebastian, foi mais tarde acrescentado após uma disputa feita de processos litigiosos e insultos na internet, ao bom estilo punk, dirigidos a James Murphy (LCD Soundsystem) cuja editora tinha o mesmo nome.dfa2

O que torna os DFA79 tão especiais? Serão as suas actuações ao vivo carregadas de intensidade onde se sente aquela urgência primal do rock? Será a simplicidade de ver dois amigos em cima de um palco com um baixo e uma bateria que nos dão a ilusão de que aquilo está ao alcance de qualquer um de nós? Afinal esta fórmula continua a dar resultados e até já há quem se divida em rivalidades entre os regressados DFA79 e o mais recente fenómeno do Reino Unido os Royal Blood, disputa essa que parece só existir na cabeça dos fãs de uns e outros, já que as suas semelhanças passam talvez por serem ambas bandas constituídas por um baixista e um baterista.

E o que leva afinal estes dois bons amigos a terminar uma relação de anos, logo no momento em que atingem sucesso à escala mundial, algo que tantas bandas ambicionam? Este documentário vem dar essa resposta ao público dos DFA79, com testemunhos de Kurt Ville, de membros dos Justice, Metric, The Strokes, Yeah Yeah Yeahs, que acompanharam o crescimento galopante da banda. É um documentário pessoal, sem filtros e honesto, onde Jesse e Sebastian falam abertamente dos seus medos e inseguranças, enquanto pessoas e artistas, e do seu amadurecimento ao longo dos anos, em que construíram famílias e se aventuraram em diferentes caminhos musicais. E no final temos a sua reunião que, através do perdão das falhas do passado, fez com que uma das bandas mais incríveis da última década voltasse aos palcos e a um novo álbum editado em 2014 The Physical World, afinal It’s the same old song. Just a different tune.

Trailer:

Documentário: Life After Death From Above 1979
Realização: Eva Michon
Ano: 2014

Kurt Cobain: Montage of Heck

9ad9c9176869fbc3610b098df2e8d168Como se faz um documentário sobre Kurt Cobain? Como se representa um homem que alcançou o patamar onde se encontram os maiores ícones da música sem endeusá-lo ou demonizá-lo?
Brett Morgen, realizador de Kurt Cobain: Montage of Heck, fá-lo através do acesso aos pertences do músico norte-americano, aos seus desenhos, às suas cassetes, gravações, diários… No fundo, Courtney Love e a sua filha, Frances Bean – que é também ela produtora do documentário -, abriram-lhe as portas para os cantos mais obscuros da mente de Cobain. Se adicionarmos o facto do realizador ter querido entrevistar somente as pessoas que estariam no funeral de Kurt Cobain caso ele tivesse permanecido um “mero” empregado de limpezas, temos assim acesso também à visão dos seus pais, madrasta, irmã, ex-namorada, Courtney Love e também do baixista dos Nirvana, Krist Novoselic. É clara a falta do baterista Dave Grohl que foi entrevistado, mas demasiado tarde para ter sido incluído no documentário.

Montage of Heck é, na verdade, o nome de uma cassete que Morgen encontrou nos pertences de Cobain. Esta cassete continha excertos de Beatles, Black Flag, audio de filmes de ficção científica e de horror; uma experiência auditiva que abriu a Morgen uma fresta do caminho que iria seguir. Após absorver tudo o que se encontrava nos pertences de Cobain, Morgen tinha assim uma linha condutora para o documentário, linha esta que conseguiu transpor para o “papel” em apenas três horas.

Entramos, assim, numa viagem de 145 minutos pela mente de Cobain através da sua escrita, dos seus diários e dos seus desenhos que ganham vida através de animação. É, aliás, uma narrativa que nos leva para uma outra dimensão a partir do momento em que nos são mostrados momentos íntimos da vida de Cobain através de vídeos caseiros, bem como de momentos da sua adolescência que são representados através da animação de Hisko Hulsing.

Este é o único documentário oficial acerca de Cobain e é também ele um retrato extremamente intenso da sua vida, das suas constantes insatisfações com a sociedade e com as repressões e hipocrisias da mesma, da sua postura reaccionária e anti-social, do seu sentimento de não-pertença em lado algum, contraposto unicamente pelo seu desejo de construção e de pertença de e na sua própria família, do consumo de drogas e da ascensão dos Nirvana, com tudo de bom e de mau que isso lhe trouxe.

They laugh at me because because I’m different, I laugh at them because they’re all the same.

Se o espectador sair do filme perturbado, então o realizador cumpriu a sua missão. Conseguiu transpor para o ecrã os meandros da mente complexa, perturbada, desorganizada e brilhante de Cobain e a esta mente, goste-se ou não do género musical, ninguém consegue ficar indiferente.

I’d rather be hated for who I am than loved for who I am not.

Há ainda que acrescentar que a narrativa que Morgen escolhe para o documentário é uma narrativa que se baseia apenas na vida de Cobain: nas suas músicas, palavras, vídeos e arte. O que significa que a temática do seu suicídio não é abordada. E bem, na modesta opinião da autora deste post. Trata-se de um documentário que nos mostra de uma forma nua e bastante crua o impacto de Cobain e da sua música, bem como do caminho de um homem até se tornar uma lenda no mundo da música e uma voz de uma (terá sido só uma?) geração.

Documentário: Kurt Cobain: Montage of Heck
Realizador: Brett Morgen
Ano: 2015

The Judge

the judgeQuero iniciar este post dizendo que o mesmo não é mais do que uma homenagem ao actor Robert Duvall. Robert Duvall é um actor que dispensa apresentações, pois um amante do cinema conhece-o bem de papéis como Lieutenant Colonel Bill Kilgore em Apocalypse Now,  como Tom Hagen na saga O Padrinho ou como Mac Sledge em Amor e Compaixão, cujo papel lhe proporcionou um Oscar para Melhor Actor.
No entanto, enquanto Judge Palmer – o pilar do filme, da família Palmer e da cidade onde desempenha o seu cargo de juiz -, Robert Duvall consegue ser de uma crueza emocional e de um carinho camuflado, de uma fragilidade e de uma dureza incomensuráveis. Uma dualidade e ambivalência de sentimentos que apenas os melhores, através da mestria na sua profissão, conseguem fazer transparecer no ecrã, sem necessitar de recorrer a overactings. É natural e é isso que é profundamente bonito.

Em tempos li algures que Stanley Kubrick acreditava que o casting de um filme era 80% responsável pelo sucesso ou fracasso de um filme, ou seja, se se colocasse o actor certo para aquele papel (e não obrigatoriamente o melhor actor) os astros alinhar-se-iam para que tudo chegasse a bom porto. E honestamente, após ter visto The Judge, não consigo encontrar melhores actores para os papéis de Judge Joseph Palmer (Robert Duvall) e Hank Palmer (Robert Downey Jr.), pois ambos encarnam as suas personagens e a relação entre ambas de uma forma quase simbiótica, atravessando caminhos física e emocionalmente muito pesados, repletos de emoção puramente crua.

Neste filme, o espectador é convidado, então, a assistir essencialmente a uma viagem pela relação conflituosa pai-filho e como esta relação se vai moldando pelas adversidades que lhes são apresentadas, seja a morte da mãe de Hank, a acusação de homicídio a que Judge Palmer é submetido, ou a doença que aparece pelo meio.

Fica, assim, a sugestão de um filme dramático que, sem overactings e sem a excessiva dramatização das personagens, nos consegue transmitir uma bonita lição de amor e de aceitação de quem somos e das pessoas que nos rodeiam, desmistificando a noção de que as dinâmicas familiares e as demonstrações dos laços emotivos têm de ser feitos à sombra do que a sociedade dita que seja. E é minha leitura que é isso que este filme pretende que não nos esqueçamos, do que é único em nós e nos “nossos”.

I my experience, Hank, sometimes you gotta forgive in order to be forgiven.

Filme: The Judge
Director:
David Dobkin
Ano: 2014

Wild: A Journey from lost to found

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Wild é a adaptação cinematográfica do livro autobiográfico de Cheryl Strayed, Wild: A journey from lost to found on the Pacific Crest Trail. O filme, de 2014, mereceu uma nomeação ao Oscar de Melhor Actriz a Reese Witherspoon mas, no entanto, parece não merecer ser estreado nas nossas salas de cinema. Cabe assim ao espectador esperar que o filme apareça no clube de vídeo da sua box ou então vê-lo num website de streaming de filmes (mas não leram isso de nós 😉 ).

O filme inicia-se a meio do caminho do Pacific Crest Trail (PCT), caminho este que liga a fronteira dos Estados Unidos com o Canadá à fronteira com o México. Lá, Cheryl, a personagem tão bem interpretada por Reese Witherspoon, encontra-se numa situação de puro desespero. Depois de largos quilómetros caminhados repletos de adversidades, especialmente para uma caminhante amadora como ela, vemo-la numa imagem um tanto ou quanto gore a arrancar uma unha do pé que já estava infectada de tanto ter andado com umas botas demasiado pequenas para os seus pés. Como se isso não bastasse, fica sem uma bota que cai pela montanha abaixo. A partir desta cena, voltamos ao início da viagem: ao motel onde Cheryl pernoita pela primeira vez antes de seguir caminho pelo PCT. Assistimos à luta epopeica de Cheryl com a sua mochila ao carregá-la com tudo o que era necessário e também acessório. Apenas mais tarde ela aprende a desprender-se do acessório, como se dos pesos metafóricos que carregava nos seus ombros se tratasse. Até lá, a Monster – alcunha dada à mochila devido à sua enormidade – é a sua maior companheira viagem adentro. Ao longo do percurso do PCT, são-nos mostrados flashbacks da sua vida anterior, da sua relação com a sua mãe, com o seu marido ou mesmo com o seu irmão… E também como tudo se foi desmoronando a partir do momento em que foi diagnosticado um cancro à sua mãe, levando inevitavelmente à sua morte. A partir deste período até ao momento em que Cheryl dá o primeiro passo no PCT, inicia-se aquele que é o período mais negro e auto-destrutivo da vida daquela mulher que mais aparentava ser uma menina desamparada sem saber para onde ir. Até que decide percorrer o PCT sozinha. Acompanhamos, assim, as aventuras de uma backpacker amadora, os encontros e desencontros com outros “colegas” caminhantes e o percurso mais longo e doloroso deles todos: o que tinha de ser feito dentro de si. Estamos perante uma mulher cuja bússola interna se encontra sem norte mas que, para emendá-la, precisa de seguir em frente. Nem que para isso tenha de preencher o corpo de nódoas negras, de perder unhas dos dedos dos pés, de perder uma das suas botas, de saltar parte do percurso por causa da neve ou de questionar por diversas vezes “o que é que eu estou aqui a fazer?”. Mas ao fim e ao cabo, são todas estas dúvidas que o caminho lhe coloca, todas estas desventuras e adversidades que a ajudam, finalmente, a perdoar-se e a encontrar-se.

How wild it was to let it be.

E no final do filme, pergunto-me se cada backpacker que há por esse mundo fora partiu também com o coração às costas. Se o guarda na mochila fechado às sete chaves ou se o usa como uma medalha de honra, com todas as cicatrizes provenientes de cada guerra do amor. Se o deixou na sua terra em pedaços e, por isso, partiu em busca de adesivo ou de uma agulha e de linha para conseguir remendá-lo. E se assim foi, se conseguiu remendá-lo com todas as cores do mundo como se de uma manta de retalhos se tratasse. Ou se a cor mais garrida era a que ficou na sua terra. Pergunto-me isto sobre os backpackers porque quem parte à procura de nada é porque tem o seu tudo na sua terra. Ou teve.

Filme: Wild
Director: Jean-Marc Vallée
Ano: 2014