Mad Max: Fury Road – Apertem os cintos e agarrem-se bem aos vossos lugares, está aqui um dos grandes filmes de 2015.

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O denominado género “acção” é um género de cinema que eu não aprecio particularmente e porque não dizê-lo, tento evitar a todo o custo. Tão pouco sou apreciadora das versões originais de “Mad Max” com Mel Gibson. À partida, não seria muito provável que eu visse um filme de acção desta saga que revisita este universo pós-apocalíptico, já explorado nos anos 80 e pelo mesmo realizador, George Miller.
No entanto, assim que o filme estreia cria um culto imenso à sua volta. Público e crítica louvam a sua inovação, e a sua ruptura com o género. A minha curiosidade é aguçada. Decido ignorar os meus preconceitos e resolvo dar uma oportunidade a “Mad Max”, para tentar perceber o que é que o filme tem de tão especial para merecer toda a atenção que gerou. E de facto, depois de o ver confesso que não gostei do filme, adorei-o.

*SPOILER ALERT*:
A partir daqui leia por sua conta e risco

“Mad Max: Fury Road” será com certeza um portentoso filme de acção/perseguição automóvel (provavelmente um dos melhores feitos dentro do género). Os avanços tecnológicos actuais das câmaras de filmar permitem ao experiente George Miller sequências e planos cinematográficos fantásticos (na estrada onde ele adora estar) e que resultam num delírio visual imparável e num ritmo alucinante nas suas 2 horas de duração.

Mas o que é verdadeiramente surpreendente em “Mad Max” é o seu contéudo sério, que aborda com muita inteligência e habilidade temáticas actualissimas como a exploração sexual das mulheres, o uso da força armada para a utilização indevida dos recursos naturais da terra em proveito próprio, a opressão dos mais fracos, a utilização de crianças-soldado na guerra e a escravatura humana.

No exacto momento do filme em que Furiosa (Charlize Theron) muda a direcção do camião saindo da estrada, não é só ela que está a desafiar o sistema. O próprio realizador George Miller começa ali a subverter todas – e são mesmo todas – as “regras” usuais do filme de acção típico de Hollywood, borrifando-se no Status Quo, quer em termos de narrativa, estrutura, personagens, e heróis e ao contrário do que é usual no cinema de acção virando o foco de atenção do filme para as mulheres.

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São elas as maiores vítimas do sistema económico-social no mundo pós-apocaliptico do filme. O tirano que é desafiado, é-o porque roubou a fonte da vida à natureza (desviando o recurso natural mais precioso do mundo a água potável) e porque usa as mulheres que mantém em cativeiro (pela sua capacidade de gerar a vida e alimentar) objectificando-as e despojando-as da sua condição humana.

“Mad Max” torna-se assim numa magnifíca história de luta, superação e redenção para os diversos tipos de “heróis” improváveis e atípicos que o povoam:

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Furiosa (Charlize Theron) tem o heroismo relutante de quem não procura o poder ou a glória mas sabe que se não for ela não há mais ninguém para salvar as mulheres.

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Nux (Nicholas Hoult) o rapaz-soldado que apesar de ter sido criado a acreditar cegamente que a imortalidade se conquista com uma morte gloriosa no campo de batalha para alcançar o Valhala(*), quando morre Nux dá a vida por amor e não por glória e paradoxalmente, é ali ao morrer que ele recupera a sua vida.

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E por fim o herói que dá nome ao filme: Mad Max (Tom Hardy).
Eis o “herói” masculino do filme de George Miller personificado em Tom Hardy em toda a sua glória: um homem que não teme a emasculação e que não vê o mundo dividido em dicotomias homem/mulher, mas sim em opressor/oprimido. Um homem que no início do filme perdeu a sua humanidade e age como um animal enjaulado movido somente pela sua necessidade de sobrevivência e que no fim do filme descobre em si generosidade, compaixão, colocando as necessidades dos outros acima das suas.

Tom Hardy é um dos maiores actores da sua geração e já tem uma mão cheia de grandes personagens no currículo, mas nunca foi tão grandioso e tão icónico como no belíssimo momento final do filme em que sai de cena silenciosamente para dar todo o protagonismo à personagem de Charlize Theron (Furiosa), acção que me trouxe à memória a frase famosa de Mário Rodrigues Luis Cobos:
“Nada acima do ser humano e nenhum humano abaixo de outro”

E isto, minhas senhoras e meus senhores não é Feminismo, é Humanismo!

Contra todas as probabilidades e todas as expectativas aqui temos sem dúvida aquele que é um dos grandes filmes de 2015. Absolutamente recomendável e imperdível!

(2015)
“Mad Max: Fury Road” (original title)
M/14| 120 min| Action, Adventure, Sci-Fi|

(*) Valhala-(“Salão dos Mortos”, que na mitologia nórdica e para os guerreiros vikings era um grande salão situado em Asgard, dominado pelo deus Odin)

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Patti Smith imortal no Coliseu dos Recreios em Lisboa

Patti Smith

Ela entra no palco e juro-vos que sinto um arrepio e os olhos quase me atraiçoam cedendo a uma estranha comoção que me apanha desprevenida. Talvez seja por ter passado o fim de semana a reler pausadamente o seu livro de memórias Just Kids que ao ver finalmente materializar-se ali, a poucos metros, em cima de um palco, a poetisa maior do rock, me pareça ainda um cenário irreal. Ela vive, não é uma ficção e ao caminhar para o microfone é como uma luz reveladora que incide sobre a plateia ansiosa e já febril.

Celebram-se 40 anos do ímpar álbum Horses de 1975 e sabemos que nesta noite o iremos ouvir na íntegra, como alguém comenta ao meu lado ainda antes de as luzes se apagarem “o que é bom é sempre bom!”, subscrevo e acrescento “às vezes até fica melhor!”. E onde estava eu há 40 anos? Provavelmente nem nas conjecturas dos meus pais e é com uma ponta de inveja que no final do concerto ao aproximar-me do merchandise oiço um senhor dizer orgulhosamente “o vinil não preciso, já o tenho desde 78!”. Desconsola-me por vezes que esta era pujante do rock e do punk não tenha esperado por mim. A verdade é que vivendo ou não esses tempos, é impossível não sentir um fascínio por esses anos livres e que nesta noite não nos imaginemos secretamente numa qualquer cave bafienta nova yorkina ou até no mítico CBGB, onde como hoje Patti Smith terá, vezes sem conta, arrancado os seus concertos com a rebelde frase “Jesus died for somebody’s sins but not mine” (se esta não é das afirmações mais punks de sempre, então eu nunca devo ter compreendido o que foi realmente o punk).

“Gloria” (G-L-O-ARE-I-A) abre triunfalmente a noite no coliseu e dá lugar a uma “Redondo Beach” mais amena que com os seus contornos de verão suaviza a plateia agitada. Mas a bonança seria breve porque de seguida, Patti, munida dos seus óculos de leitura e de algumas páginas, prepara-se para declamar freneticamente o poema que é “Birdland”. O atropelo, a fúria e a angústia da sua voz nos versos “No, daddy, don’t leave me here alone / Take me up, daddy, to the belly of your ship / Let the ship slide open and I’ll go inside of it / Where you are not human, you are not human” deixa-nos em transe e eternamente agradecidos por podermos comungar deste momento. A atmosfera está agora completamente incendiária e por isso não é surpresa quando na “Free Money” acontece um pequeno mosh pit que desperta sorrisos gerais, até em quem leva com um encontrão um pouco mais violento, afinal todos sentimos o mar agitado mas há sempre quem precise de furar a rebentação.

É tempo agora de virar o disco para o lado B e colocar a agulha no groove seguinte, diz-nos Patti, e ao som de “Kimberly” recuperamos fôlego para outro dos momentos mais memoráveis da noite, “Break It Up”, homenagem a Jim Morrison. Patti conta-nos como numa noite Jim lhe apareceu num sonho na forma de um belo anjo de mármore e de como ela lhe pediu que se libertasse da prisão da sua escultura. Esta noite ao grito de Patti juntou-se o nosso em uníssono, “break it up Jim!”. Agora a entrega é total e quando “Gloria” surge novamente colada ao final de “Land” o coliseu estremece para a maior explosão da noite.

Horses para além de ser um dos álbuns de rock mais icónicos de sempre, é antes um álbum que fala sobre a morte e a perda, que Patti infelizmente conhece tão bem. É um elogio a todos aqueles que partiram cedo demais e “Elegie”, especialmente dedicada a Jimi Hendrix, serve esta noite para recordar muitos mais. Reina um silêncio sepulcral na sala quando Patti, de voz firme e em completa paz, recorda Jim Morrison, Jimi Hendrix, Brian Jones, Janis Joplin, Joe Strummer, vários membros dos Ramones, Kurt Cobain, Allen Ginsberg, Amy Winehouse, Fred Sonic Smith (o seu marido), Robert Mapplethorpe, Lou Reed… entre tantos outros numa lista que nos parece infindável e à qual alguém na plateia ainda acrescenta num grito o nome de William S. Burroughs. Muitos partiram envoltos no misticismo de uma morte trágica e prematura, pelo que não podemos deixar de pensar que neste momento à nossa frente está uma lenda viva do rock, a quem os seus 68 anos não roubaram alma nem misticismo, com uma mensagem e luta tão ou mais fortes do que há 40 anos atrás.

Chegamos ao final de Horses mas não ao final da noite que prossegue com “Pissing in a River”, frenética e urgente, que Patti termina deixando-nos em companhia da sua banda para mais uma homenagem, agora “a uma das melhores bandas que Nova Iorque já conheceu”, os Velvet Underground e segue-se um medley bem temperado de vários dos seus êxitos, como “Rock & Roll” ou “White Light White Heat”.

A memória, a fúria, o sentimento, que se repetem em ciclos improváveis, fazem desta noite uma montanha russa de emoções e o momento mais emotivo, que apelou aos corações fortes, foi aquele em que Patti recordou como escreveu “Because the Night” para o seu namorado que haveria de se tornar seu marido e o homem que mais amou, dizendo-nos “and he died but when I sing this song he is still my boyfriend” (agora sim escapa-se uma lágrima). O que vale é que de seguida saltamos para outro contexto com “People Have The Power” bem apropriada para os tempos que se vivem neste país, de decisões e eleições, “don’t forget it you have a voice!” é o seu alerta final.

Não queremos simplesmente que a noite acabe, é egoísmo sim, mas é mais forte que nós e clamamos por um encore, fazendo ressoar o chão de madeira do coliseu e Patti regressa para o momento mais punk da noite, a obrigatória cover dos The Who “My Generation”. Abre-se novamente o portal mágico para a Nova Iorque, década de 70, geração a quem a música e em especial o punk prometeu uma salvação. 40 anos depois a geração de agora também precisa de salvação, poderá ser a música ainda a resposta? Não há como duvidar quando após arrancar furiosamente todas as cordas vemos Patti empunhar a sua guitarra eléctrica ao alto e dizer-nos que aquela é sua arma e que a nossa guerra é o rock and roll. Obrigada Patti!