(*) Hamletbatch- termo carinhoso utilizado pelos fãs de Benedict Cumberbatch para se referirem ao papel do actor na célebre peça de William Shakespeare, Hamlet.
Aguardada com grande expectativa, a peça Hamlet encenada por Lyndsey Turner, produzida por Sonia Friedman e protagonizada por Benedict Cumberbatch era o acontecimento teatral do ano. Os bilhetes para os 4 meses das suas representações voaram no mesmo dia em que foram postos à venda e a peça estava esgotadíssima desde Agosto de 2014. Perante todas estas evidências a autora deste post já se tinha resignado a aceitar a cruel realidade de que nunca a conseguiria ver. Como fã de teatro em geral, e em particular do Bardo, da peça Hamlet e “last but not least” de Benedict Cumberbatch, esta era uma decepção que era sentida com força em quatro frentes.
Foi assim com grande alegria, que recebi a notícia de que o UCI tinha estabelecido uma parceria com o British Council, para promover as peças da RSC(Royal Shakespeare Company) e iria através do “National Theatre Live” transmitir também a peça “Hamlet” em directo, do teatro Barbican em Londres para Lisboa. Esta iniciativa já habitual noutros países era (tanto quanto sei) totalmente inédita até à data em Portugal.
À hora e na data marcada nota-se com agrado que a sala do UCI está repleta de gente. Vislumbram-se na audiência o que devem ser alguns alunos e professores do British Council e alguns actores e autores conhecidos da nossa praça. Uma audiência que só pode ser conhecedora. A peça é em Inglês (aliás, no difícil Inglês de Shakespeare), não tem legendas nenhumas e tem 3h20m de duração (incluindo 20 minutos de intervalo). Quem está ali sabe ao que vai, e vai por interesse, por ofício mas sobretudo vai por gosto.
Hamlet tem então ínicio com Benedict Cumberbatch a ouvir a música “Nature boy” na versão de Nat King Cole. Está dado o mote para o tom da peça e compreendida a razão de ser do cartaz de promoção (que retrata os actores como crianças e que tanta discussão causou).
Nessa primeira cena percebemos que Hamlet é um rapaz que tenta conformar-se com o que esperam dele (que cresça, que seja um homem e que ultrapasse o luto da morte do seu pai), sacrificando a ligação à sua natureza mais autêntica (os seus sentimentos).
A encenadora Lyndsey Turner afasta-se conscientemente de anteriores interpretações de Hamlet que dão ênfase acima de tudo à teoria do complexo de Édipo e às suas alegadas e inconscientes pulsões sexuais incestuosas. Não há pulsões dessa natureza neste Hamlet. As suas subversões, ainda que remetam para a infância são de natureza muito mais subtil.
A morte do pai causou uma ferida emocional na psique de Hamlet que abalou a sua vida e ele procurará no retorno à infância o conforto que não encontra em mais lado nenhum.
A batalha da psique de Hamlet que Cumberbatch tão bem soube transmitir é que apesar do homem em si conhecer o segredo que ninguém mais conhece, o seu tio Claudius (um portentoso Ciarán Hinds) matou o seu pai para ficar com o seu reino e com a sua mãe, a criança que há em Hamlet que não quer crescer, não quer ouvir, tem receio de agir, e esconde-se na sua mente para não ter de lidar com isso.
A necessidade de regressar à infância que só era pressentida, apresenta-se agora à sua consciência como um destino inevitável. Assim é o Hamlet de Cumberbatch a tocar os seus discos de música nostálgica, com o seu castelo de brincar, o seu uniforme de soldadinho, o seu casaco com o título “KING” escarnecendo dos
adultos, do reino da Dinamarca, das responsabilidades que lhe querem atribuir. Sarcástico com os empregados, irónico como pai de Ofélia, Polónio (Jim Norton) e com os seus amigos, hostil com o seu tio e cruel nas suas tiradas ao seu amor Ofélia, e à sua mãe que é a fonte principal de todos os seus desgostos e de todas as suas neuroses.
Inconstante como uma criança petulante nos seus afectos, no seu temperamento, na sua loucura. É essa a imagem que ele projecta aos outros.
Mas quando só o público o consegue ver é que Hamletbatch mostra o que há de mais autêntico e mais profundo em si mesmo. Só nos solilóquios/monólogos vemos o homem em si a emergir e a verdadeira profundidade das paixões que o movem a manifestar-se: a ferver de indignação e a rebentar de raiva, a conspirar e a sofrer.
No meio desta batalha interior na sua psique, Hamletbatch faz muitas vítimas. O seu amor, Ofélia (Siân Brooke) é a maior delas todas. Contra ela vira ele a raiva impotente que sente pela mãe. De início choca-me a estridência desta Ofélia-criança que vê o mundo com olhos infantis através da sua máquina fotográfica a tentar capturar os momentos efémero da vida para não os perder.
Mas vejo-a vulnerável e inocente como uma criança a lidar com a dor. Como uma criança, ela é tranquilizada, confortada, como uma criança em muitas cenas as outras personagens falam dela, falam para ela, mas nunca com ela. De todas as mortes da peça é a sua a que me mais me toca, a da criança-Ofélia a desfazer-se perante os nossos olhos.
Além do pedido de vingança há um pedido fervoroso do fantasma a Hamlet “Fala com a tua mãe”. E ele fá-lo na cena mais bonita e tocante de toda a peça.
Ajoelhados frente a frente, Hamlet e Gertrude, mãe e filho (Cumberbatch e uma fabulosa Anastasia Hille) finalmente olhando-se, finalmente falando um com o outro numa cena tão pura e tão intensa que sentimos a energia a atravessar o palco do teatro Barbican em Londres e a tocar-nos através do ecrã de cinema em Lisboa.
O homem que é Hamlet revela o que a criança em si sentiu: toda a dimensão da traição e da rejeição da mãe quando ela pôs alguém à frente dele e da memória do seu pai, e a mãe que o ama incondicionalmente fica desfeita porque percebe que inadvertidamente o magoou e que nem todo o seu amor de mãe é capaz de o proteger da dor, do sofrimento, dos desapontamentos que resultam do facto de se crescer, de amar e perder alguém.
Hamlet percebe finalmente que não há reconciliação possível entre a criança e o homem que vivem dentro de si. É essa batalha perdida que é a grande dimensão da tragédia do príncipe da Dinamarca.
É o momento mais perfeito, bonito e intenso de toda a peça.
A partir daí, o destino de Hamlet está traçado e ele caminha inevitavelmente para a sua morte. Os cenários belíssimos reflectem destruição interior de Hamlet, que por sua vez simbolizam a destruição do reino da Dinamarca. O assassinato de Polónio, o exílio forçado, o regresso, a descoberta do suicídio de Ofélia e a contemplação do crânio do bobo Yorick, Cumberbatch subversivo com a sua t-shirt de David Bowie, e o seu casaco de capuz é inexcedível, inesquecível e glorioso em todas as cenas e dá tudo, tudo em palco com aquela generosidade que só os grandes actores são capazes.
No final da peça, após os agradecimentos há algumas palavras suas para a causa dos refugiados sírios. Na sua voz belíssima é citado um pequeno extracto do poema “Home” da poetisa Warsan Shire, que fala da decisão difícil que os pais têm que tomar quando fogem do seu próprio país levando os seus filhos consigo para o que pode ser uma morte certa:
“No one leaves home unless
home is the mouth of a shark”
“Ninguém abandona a sua casa
A não ser que essa casa seja a boca de um tubarão ”
Nesse momento tocante há um confetti na cara de Cumberbatch que lhe ficou da cena da morte de Hamlet. Longe de ser ridículo o confetti não tira nenhuma solenidade àquele momento bonito. Pelo contrário, eu que não acredito em coincidências não consigo deixar de ver um significado oculto naquilo.
A criança em Cumberbatch que eu tenho visto desaparecer sob o peso da pressão do estrelato, das equipas de relações públicas, do marketing pessoal, dos contractos publicitários, da estratégia dos agentes americanos, das campanhas falsas para os óscares tudo, tudo desapareceu naquela noite.
E tudo o que havia de pueril, infantil, inocente e autêntico em Cumberbatch regressou.
É a respirar o pó dos palcos que a criança que existe no íntimo de Cumberbatch, essa parte de si próprio que é feliz, espontânea, confiante e emocionalmente expressiva se revela. É ali que ela se sente amada, acarinhada e realizada.
Eu vi-a e vi-te a ti Cumberbatch. Não a estrela mas o actor. Vi como foste perfeito a exprimir e a dar forma ao terror, à beleza e ao poder das emoções sombrias de Hamlet, como mergulhaste profundamente no reino dos seus sentimentos e acedeste ao que lá estava: a alma e a tristeza, e todos esses lugares insondáveis e tão escuros que não podem ser vistos com clareza só vagamente pressentidos. E tu, conseguiste mostrá-los!
Foste grande. Foste inteiro. Foste tu.
Por isso tudo muito obrigada, Benedict.
Não deixes que matem a criança que há em ti!
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