Sherlock- A Noiva Abominável. Anatomia da psique de um génio ou a chave para compreender Sherlock

” Não existem fantasmas neste mundo! Excepto aqueles que nós criamos para nós próprios.

Sherlock Holmes in “A noiva abominável”

“Os fantasmas existem. As pessoas sempre souberam disso, em qualquer parte do mundo.(…) Só que agora chamamos-lhe nomes diferentes. O inconsciente. A memória.”

“A história secreta”
Donna Tartt

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Depois de 2 anos de espera, o novo episódio de Sherlock era naturalmente aguardado com uma expectativa ansiosa e, pela parte que me toca, também com um certo receio cauteloso. Se por um lado a transposição da série moderna para a época Vitoriana (a época em que originalmente Sir Arthur Conan Doyle a criou) me aguçava a curiosidade, por outro lado, havia algum receio que este episódio especial fosse transformado numa versão caseira, e auto-indulgente de Sherlock que servisse mais para cumprir calendário e acalmar os fãs e não ofendesse nem deslumbrasse ninguém. Para minha grande alegria os meus receios eram infundados.
A série, sempre igual a si própria, frustrava todas as expectativas dos espectadores casuais que se ligaram à BBC1 no primeiro dia do ano, à espera de um mistério clássico com contornos góticos, e em vez disso levou as audiências a embarcar numa viagem alucinante ao sítio mais excitante que existe: a mente do homem mais inteligente do mundo.

Esta abordagem surpreendente e inesperada deixou uma parte da audiência perplexa (e nalguns casos zangada) havendo mesmo quem se queixasse da complexidade do argumento, da dificuldade em acompanhar a história e acusasse a série de se ter tornado “demasiado inteligente para o seu próprio bem”!

Outros há que consideram  “A noiva abominável” uma obra-prima pós-modernista (grupo no qual se inclui a autora deste texto).
Opiniões e polémicas à parte, o facto é que “A noiva abominável” é um exemplo perfeito daquilo que a televisão de qualidade  pode e deve ser e o que consegue o talento criativo que acredita em si mesmo, especialmente quando tem os meios, a paixão e o respeito absoluto pelo seu ofício. Um trabalho de génio e rigor meticuloso em termos de narrativa, estudo e desenvolvimento das personagens, com conteúdos psicológicos inteligentes, diálogos recheados de humor e duplo sentido, com a usual química entre os dois protagonistas, um cuidado cinematográfico sem mácula, atenção ao detalhe e ao rigor histórico, com a  acção a decorrer ao habitual ritmo alucinante de Sherlock e sempre, sempre com o entusiasmo vibrante a que já nos habituou.

Sendo já um objecto de culto, naturalmente circulam centenas de teorias e opiniões sobre o que facto aconteceu nos seus 90 minutos de duração. Esta é só a minha opinião (irrelevante, amadora e pouco fundamentada, acrescentaria Sherlock).

Sinopse:
No final da 3ª temporada, após ter matado um homem a sangue frio, Sherlock Holmes é condenado ao desterro, e tem que abandonar a Inglaterra para embarcar numa missão suicida. Ainda mal o avião está no ar é trazido de volta porque a segurança do país está em risco: o seu inimigo mortal  Moriarty está de volta.
A  possibilidade de perder John Watson e o “regresso” de Moriarty – que Sherlock viu matar-se à sua frente, causam ao mesmo tempo uma perplexidade emocional e intelectual em Sherlock, levando-o a procurar respostas dentro da sua própria mente.

(Analisado numa perspectiva psicológica Junguiana, Sherlock será assim o “Ego”,  isto é “alguém” que dará início à sua viagem em busca da totalidade do “Self”, em busca da meta do processo de integração do seu eu)

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Sherlock a perseguir persistentemente a luz do ego consciente que lhe permitirá mergulhar no abismo da natureza, que é feminina.

Explicado de outra maneira, o sonho de Sherlock –  induzido pelo cocktail de drogas que ele toma durante a viagem – será uma manifestação do seu inconsciente que ligará os processos inconscientes à consciência por meio de símbolos.
Assim, no seu sonho todas as personagens são elas como Sherlock as vê mas também como Sherlock pensa que elas o veem a ele – isto significa que todas são projecções dos medos, ansiedades, pulsões e desejos de Sherlock.
Todos os diálogos têm entrelinhas e todas as imagens, todos os pormenores da história são importantes porque terão um duplo sentido, literal e simbólico. Dito de outro modo, este sistema de símbolos criado pela mente de Sherlock – o período histórico Vitoriano, a análise de um caso da época que não teve solução- é a forma que a sua mente brilhante utiliza para conhecer as suas energias latentes e as suas forças em conflito.

O caso que Sherlock tem de decifrar no seu sonho é mistério da noiva “Emelia Ricoletti” uma mulher que, conta o Inspector Lestrade da Scotland Yard, depois de se ter suicidado no dia de aniversário do seu casamento à frente de várias testemunhas, regressa do reino dos mortos para matar o seu próprio marido!
Sherlock e John visitam a morgue onde o cadáver da noiva está ao lado do cadáver do marido que ela alegadamente matou depois de já estar morta.

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Emilia Ricoletti, a noiva abominável

Espantado, John Watson sugere a solução mais óbvia e racional (e aquela que todos os espectadores estão a pensar naquele ponto da história):
” – Podem ser gémeas.”
” – Nunca são gémeas.”- responderá Sherlock impaciente com a resposta óbvia de Watson.
A psique de Sherlock vislumbra que a solução para o caso será muito mais complexa que isso: a principal característica do mundo será a dualidade sim, mas de opostos: luz e escuridão, consciente e inconsciente, masculino e feminino.

Para descobrir o mistério, Sherlock terá assim de continuar a penetrar cada vez mais fundo na sua mente e terá de passar por diversas etapas de auto-análise e descoberta:

Passo 1- O reconhecimento da sua “Persona” (isto é a sua personalidade pública, ou a máscara social que ele usa)
Sherlock e John têm percepções diferentes e opiniões vincadas sobre aquilo que cada um acha que o detective é e o que deve ser:

Sherlock- Desde quando é que TU tens algum tipo de imaginação?
John- Talvez desde que consegui convencer o público que me lê, que um viciado em drogas sem escrúpulos é uma espécie de cavalheiro heróico. 
Sherlock- Sim, agora que falas nisso, isso foi realmente bastante impressionante.

Ao reconhecer a sua própria “Persona”, (isto é, a imagem de “herói genial” que John Watson criou de si para o público através das histórias que escreve), Sherlock reconhece que essa máscara é ambas as coisas: é necessária porque tem funções sociais protectoras importantes,  mas é também um mero artificio porque não reflecte quem ele realmente é.

Não é coincidência (porque em Sherlock não há coincidências) que John Watson insista sempre com Sherlock para ele usar “o chapéu”, símbolo máximo da “Persona”/personalidade pública de Sherlock, (chapéu esse que Sherlock DETESTA como detesta quaisquer papéis sociais impostos).
John Watson- que tem ele próprio uma dualidade- é ao mesmo tempo um médico (aquele que cura) mas também um soldado (aquele que mata)- funcionará como uma projecção do “self” de Sherlock pois tem o potencial inato para a integridade.

Passo 2- Confronto com a Sombra (o criminoso, Moriarty)
Moriarty representa aqui o lado brutal e animal da personalidade de Sherlock mas também a personificação dos aspectos mais refinados dos desejos sexuais reprimidos  e pulsões interiores aos quais Sherlock, “o ego consciente” nega qualquer expressão.

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Moriarty- Andrew Scott

Sherlock e Moriarty confrontar-se-ão outra vez em Baker Street e o actor “Andrew Scott” é absolutamente aterrador e perverso numa cena que perturbou muitos espectadores pelas conotações agressivas dos seus gestos, pelas insinuações e ameaças de carácter sexual, e pelo simbolismo fálico (a arma na boca).
Sherlock (o ego) consegue resistir ao confronto com Moriarty (a sombra) mas sairá desse confronto visivelmente abalado. Mais abalado do que alguma vez o vimos.

Passo 3- O reconhecimento da sua “Anima” (isto é, aquilo que Jung descreveu como “a personificação das forças femininas na psique de um homem).
De início, à semelhança da “Sombra”, a figura do sexo oposto possuirá para  Sherlock (o ego) muitas qualidades obscuras e ameaçadoras que primeiro se manifestam:  a noiva “Emilia Ricoletti” poderá ser a personificação do medo que Sherlock tem não das mulheres, mas sim das características usualmente atribuídas ao sexo oposto.
Como tal, ela  tem de morrer e de se sacrificar para que as outras mulheres/ forças femininas no interior de Sherlock possam finalmente emergir e simbolicamente o Ego masculino de Sherlock possa também  assimilar as suas qualidades “femininas”, isto é a subtileza, a intuição, e principalmente a capacidade de estabelecer ligações e demonstrar sentimentos. É isso que o inconsciente de Sherlock lhe procura mostrar no sonho: a sua perspectiva exclusivamente racional, fria e crítica da vida tem graves limitações se ele não se relacionar com o seu lado feminino.

É isso também o que lhe diz indirectamente o seu irmão Mycroft ( a única pessoa no mundo que Sherlock considera ser mais inteligente que ele próprio)! Mycroft Holmes  ao contrário de Sherlock, consegue avaliar também a realidade subjectivamente, através da emoção (por isso descobre os “culpados” do crime antes de Sherlock, e aponta a Sherlock o caminho para o caso a decifrar) e é ele quem primeiro diz a Sherlock que aquela é uma guerra justa que “eles” têm de perder. “Eles” a sociedade vitoriana mas também “eles” as diversas vertentes da psique de Sherlock.

A “cliente” de Sherlock “Lady Carmichael”, personifica também o guia feminino que o leva a atravessar o caminho que o conduzirá ao outro lado de si mesmo. Não é por isso coincidência que seja ela a piloto do avião onde Sherlock viaja na outra realidade.

Na cena da igreja rodeado pelo denominado “exército de mulheres” (uma liga feminina obscura, um culto de justiceiras mascaradas e injustiçadas) –  Sherlock(o ego) fará então o seu discurso triunfante: “Todas as grandes causas têm mártires, todas as guerras têm missões suicidas, e isto é a Guerra!”

E será de facto a guerra! Porque como a mente racional de Sherlock tão bem compreende, a sociedade da época Vitoriana divide-se em fracções antagónicas: masculino contra feminino, negro contra branco, uma classe contra a outra.
Mas o que Sherlock  ( o “ego”) não consegue ver é que a guerra está também na sua própria psique que se divide em complexos centros de energia que se opõem uns aos outros. E a maior guerra de todas está no interior de si mesmo: a guerra entre o sentir e o pensar, entre o cérebro e o coração.  A guerra que ele tem de perder.

Sherlock que é todo pensamento, conhecimento intelectual e lógica racional não consegue intuir o que o seu inconsciente lhe está simbolicamente a mostrar:  Emelia a “noiva abominável”, todas as mulheres/forças femininas, “Lady Carmichael”, “Moriarty” são uma e a mesma porque são todas vertentes da sua psique que não aceitam mais ser ignoradas, nem ostracizadas, nem reprimidas e podem mesmo dominá-lo se ele as tentar ignorar!

Como a psique funciona em espiral, Sherlock voltará continuamente aos mesmos problemas e vai confrontar-se muitas vezes com as mesmas questões, mas em diferentes graus de evolução e de desenvolvimento.
Assim a “viagem” de Sherlock tem obrigatoriamente que terminar na mítica Cascata de Reichenbach (onde o escritor Sir Arthur Conan Doyle matou a sua criação Sherlock Holmes) e ali ele tem que enfrentar novamente o seu inimigo Moriarty no “eterno” confronto final.

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As Cataratas de Reichenbach

Nessa luta física Moriarty (a sombra) domina fisicamente Sherlock (o ego) e está em vias de destruí-lo, até que John Watson( o self) aparece, salva Sherlock e atira Moriarty pela cascata numa cena inesquecível!
É esta a solução do inconsciente de Sherlock para o problema final:
Sherlock e John, tal como o Ego e o Self  complementam-se  como 2 metades de um disco que encaixam perfeitamente quando são colocadas em conjunto. Separados estão incompletos, juntos são uma força imbatível e imparável.
Consciente disto, Sherlock(o ego) poderá então mergulhar sozinho na cascata, para “acordar”,  iluminar e trazer para a consciência todos os conteúdos ocultos que existem dentro de si, transformando-os e integrando-os (e quem sabe conseguindo libertar-se dos seus próprios hábitos autodestrutivos e da sua enorme resistência mudança).

É um conceito absolutamente brilhante e genial. Muito dificilmente a televisão voltará a ser assim tão estimulante, complexa, e inteligente (pelo menos até vermos o próximo episódio de Sherlock).

– Poesia ou Verdade?-  pergunta  Sherlock ao Inspector Lestrade da Scotland Yard
– Muitos diriam que são ambas a mesma coisa- responde o Inspector
– Sim, os idiotas- diz Sherlock

É claro que Sherlock Holmes pode continuar a debitar estas pérolas de lógica Holmesiana, ou drogar-se até morrer de overdose só para não ter que lidar com a sua vulnerabilidade e com os seus sentimentos mas já não consegue enganar ninguém. Qualquer que seja o ângulo de análise de “A Noiva Abominável”, a verdade é só uma: Sherlock Holmes, o cérebro, o génio, o homem ultra-racional que um dia disse que o seu corpo era apenas transporte, que o Amor era um erro humano, e que o sentimentalismo era um defeito químico, desceu ao mais profundo da sua mente e encontrou lá aquilo que ele mais receia na vida: o seu coração.

Não existe nenhuma verdade mais poética que esta!
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Nota: (1) A personagem de Sherlock Holmes, é desde sempre uma das minhas favoritas em particular nas suas vertentes literárias e televisivas. Enquanto escrevi este post, a sua voz e a sua presença foram uma constante na minha mente. Gostava de poder dizer que foi uma presença inspiradora (e tão fofinha como um unicórnio a correr livre  num campo de flores, borboletas e arco-íris) mas infelizmente, isso não é verdade.
Sherlock não gostou nada de ser analisado e lutou com a mesma fúria com que luta um lobo solitário, quando alguém lhe perturba a solidão. A sua voz foi sempre incómoda, exigente e hiper-crítica. Uma voz interior sarcástica que julgou brutalmente tudo o que eu pensei e escrevi, ridicularizou cada uma das minhas ideias, e insultou constantemente a minha inteligência, as minhas limitações e as minhas falhas. Se este post foi publicado foi só porque nesta batalha de vontades eu lhe ganhei na única coisa em que sou melhor que ele: na teimosia.
(2) Alguns agradecimentos,  pedidos de desculpa (corrige-me Sherlock) a várias pessoas que inspiraram este post:  a Carl Jung e a Sir Arthur Conan Doyle (que se calhar estão a dar voltas nos respectivos caixões). Aos escritores de Sherlock (por provocarem os espectadores e não levarem a audiência ao colo), e a toda a equipa que faz a série. Às outras pessoas que também escrevem neste blog e que são pacientes, tolerantes e encorajadoras para comigo, bem como aos leitores deste blog (os silenciosos e os reivindicativos). E por fim a Sherlock Holmes, esse mítico caçador de dragões.

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