#Tudoaprecisardemassagensnoego

Antes de existirem as redes sociais, onde é que as pessoas manifestavam gratuitamente as suas ofensas, certamente os jogos de futebol não seriam o suficiente, muito menos o trânsito, pois esses fenómenos continuam a existir? Onde é que exaltavam o seu massivo (ou compensavam o seu frágil) ego engrandecendo-o através da partilha de selfies seleccionadas de uma palete delas, pois as 156 anteriores não favoreciam o seu melhor lado? Onde é que iriam buscar a validação dos seus amigos através de likes e partilhas? Ou o que é que nos salvava da nossa própria apatia, estando sozinhos ou acompanhados? Não íamos aos bolsos buscar um telemóvel num gesto praticamente automático e não tínhamos como nos isolar do mundo real, passando de um mundo onde as coisas se passam vagarosamente para um mundo onde tudo se passa a uma velocidade atroz, com a partilha de tudo e de todos, a toda a hora e em qualquer lugar. Quão aborrecida é a vida quando a vivemos ao seu ritmo e nos deixamos simplesmente estar. Seja com o o outro ou connosco. Passamos assim de uma existência, ainda que triste, para uma não-existência no momento em que o nosso cérebro se liga a um cabo invisível que faz a ponte para esse mundo virtual, deixando o corpo num estado zombieficado. Precisamos de estímulos como quem precisa de uma próxima dose de droga. É só ver se há mais alguma notificação. É só ver o que fulano de tal disse acerca do fenómeno x. É só ver o que aquela pessoa, aquele crush, aquele mundo anda a dizer ou a fazer, só para me sentir mais ligado no momento em que me desligo do que se passa à minha volta ou mesmo em mim. Ah, ter de me ligar a mim… isso às vezes é uma chatice. Mais vale adormecer os sentidos, mergulhar no virtual, e ocupar a mente com outras coisas que me afastem de mim.

Ver este vídeo de Louis C. K. acerca deste assunto.

O problema não está, é claro, nas redes sociais. Apenas são um ampliador que coloca à luz todas as fragilidades do ser. Sem filtros (ou por vezes com demasiados filtros). Como se o facto de ter uma ferramenta à minha frente que me permita dizer tudo aquilo que me passa pela cabeça me desse o direito de o dizer sem ter em consideração o Outro, partindo para ofensas gratuitas do alto da minha sabedoria e do meu achismo. Aliás, a facilidade com que isto se faz, a facilidade com que se parte para a ofensa, a facilidade com que nos ofendemos com tudo o que nos aparece no nosso newsfeed, a facilidade com que tudo se torna viral, mas apenas por meros instantes até aparecer o próximo assunto que mereça ser viral e nos faça esquecer de todos os outros mil assuntos contra os quais nos indignámos, partilhámos, sensibilizámos. Alguém se lembra? Eu não. É tudo volátil, é tudo fugaz e somos todos enormes por detrás de um teclado, numa realidade desvirtuada onde o que interessa é a manifestação de um Eu aumentado.
Não sei se de repente toda a gente passou a precisar de massagens no ego, de lições de respeito mútuo, ou se sempre precisaram e simplesmente não estava visível a olho nu.

À sexta-feira estou …a recomendar a leitura do livro “A história secreta” de Donna Tartt

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“A história secreta” é o muito aclamado romance de estreia da escritora norte-americana Donna Tartt (escritora que em 2014 ganharia o Prémio Pulitzer com a sua obra “O Pintassilgo”). Publicado há mais de 20 anos, o livro foi um êxito de crítica e de público e é por muitos já considerado um clássico da ficção americana moderna.
Donna Tartt começou a escrevê-lo aos 19 anos, enquanto estava na faculdade e a experiência universitária do protagonista e narrador do livro Richard Papen reflecte muito da sua própria experiência na altura: a vida no campus universitário numa faculdade longe de casa, o estudo literário dos clássicos gregos e uma perfeita descrição de um certo sentimento de incerteza mas também uma sensação de invencibilidade e liberdade que só se consegue sentir numa época específica na nossa vida, o final da adolescência/início da vida adulta.

Richard Papen é um estudante oriundo da Califórnia que vai ingressar na Universidade de Hampden em Vermont e no restrito grupo de estudo de Grego Antigo do qual fazem parte os estudantes Bunny, Henry, Francis e os gémeos Charles e Camila liderados pelo carismático professor Julian Morrow. Este excêntrico grupo de estudantes move-se num mundo à parte dentro da própria universidade, devido à sua inteligência e talento, riqueza e ligações familiares, mas principalmente porque está fortemente unido numa teia de segredos, enganos e silêncios.
O livro não pode ser descrito como um romance policial no sentido mais convencional do termo: no prólogo a escritora revela-nos a identidade da vítima, e a identidade de pelo menos 2 dos seus assassinos, no entanto, apesar desta revelação que contraria as regras mais básicas de qualquer livro policial, devido à extraordinária capacidade de Tartt para contar uma história, uma vez que se comece não se consegue parar de ler com ávido interesse as suas mais de 700 páginas.
Como na literatura clássica, Tartt está muito mais interessada em explorar os porquês do crime do que o quem. Não faz qualquer julgamento moral às acções das suas personagens e deixa ao leitor a tarefa interessante de tentar entender as motivações de cada uma delas e o trabalho de detective de procurar a verdade no meio da visão pouco clara do narrador. O leitor é mantido numa tensão constante, nunca tendo certeza se o que lhe conta Richard é a verdade factual ou se estará como ele a ser vítima de uma subtil e elaborada manipulação.

Richard, o narrador “outsider” que não pertence ao mundo que está a descrever (como acontece com Nick Carraway, o narrador de “O Grande Gatsby”), acredita-se fazendo parte da acção mas o leitor intui que mais que participante ele é um mero observador e uma testemunha muito pouco fiável: a sua visão dos acontecimentos é constantemente influenciada pela sua admiração mal disfarçada pelo grupo ao qual ele quer pertencer, pela sua parca experiência de vida e pelos seus constantes estados alterados de consciência provocados pelas diversas substâncias intoxicantes que ingere.
O deus grego Dionísio, o deus do vinho, das festas e dos ritos religiosos mas sobretudo o deus da intoxicação que para os gregos simbolizava tudo o que era caótico, perigoso e indomável é uma figura omnipresente na obra. Procurando fundir-se com ele para se libertar de si mesmos, os estudantes vão inadvertidamente libertar também o que de mais primitivo e selvagem têm dentro de si.
No final do livro, quando a neve de Vermont derrete expondo o corpo da vítima, já para o leitor derreteram também as máscaras de todas personagens. Afinal, Dionísio, era o deus-espelho porque reflectia para as pessoas aquilo que elas eram (quando despojadas das suas máscaras sociais, da sua razão e da sua moralidade).

Um romance rico, intenso, e por vezes psicologicamente perturbador onde Donna Tartt nos mostra quão frágil é a crença humana que a cultura civilizada que adquirimos nos pode proteger do lado selvagem da nossa natureza. Como qualquer bom livro “A História Secreta” deixa-nos com mais perguntas do que nos dá respostas e fica connosco muito, muito tempo depois de o termos lido.

A História Secreta
Autora: Donna Tartt

Edição: Círculo de leitores
708 páginas

All in a day’s dream

Há nove anos atrás, ainda antes dos tempos do facebook e da consequente utilização excessiva das redes sociais, quando uma pessoa queria saber algo sobre uma banda teria de correr por essa internet fora para procurar mais informação, pois esta não estaria à nossa mão de semear 24/7 por via de um simples refresh de uma página. Se queríamos partilhar ideias, discutir qual a melhor ou pior música, melhor ou pior álbum, haviam fóruns para o efeito. Mas em Portugal não havia esse espaço onde se pudesse partilhar a vida que existe para lá de nós através da Dave Matthews Band. Era uma banda com pouco ou nenhum airplay, poucos seriam os amigos que a conhecessem ou se a conheciam ficavam enfadados com o nosso entusiasmo.

Em 2007, a Dave Matthews Band estrear-se-ia em Portugal. No Pavilhão Atlântico, ainda por cima. Com capacidade para 20.000 pessoas. Mas esta gente está doida? Ninguém ouve a Dave Matthews Band em Portugal, não há airplay, muito menos publicidade ao concerto que iria ocorrer a 25 de Maio de 2007. Vai ser um fiasco… Era o pensamento natural na altura. Éramos uns bichos estranhos que ouvia uma banda com jams intermináveis vinda do outro lado do Atlântico e que nem sequer passava na rádio. Então mas… … …para a promotora arriscar numa sala desta dimensão é porque estão confiantes que haverá público que justifique este investimento. Então mas… … …quem serão essas pessoas?

O meu irmão, curioso por natureza e amante da Dave Matthews Band como eu, resolveu criar um fórum dedicado exclusivamente à banda e à partilha de vivências, emoções, ideias dmb-related. E nunca ele pensou que esse dia tivesse tanto impacto na vida de algumas pessoas. Pois num espaço virtual, criaram-se amizades reais. Laços criados por causa de uma banda, mas mantidos pelo gosto, apreço e respeito por cada um.

Nove anos já deram azo a muitas memórias conjuntas, a alguns encontros (sendo que o deste ano será em Viseu no dia 18 de junho!); já sabemos quais as músicas que tocam no coração de cada um; qual a música que será tocada quando um de nós for para a cova (hey, eu sei que é macabro, mas longas horas de conversa dá nisto); já viajámos em conjunto para assistir a mais concertos porque nem um, nem dois, nem três são suficientes; ficamos extasiados quando vemos com eles as suas músicas favoritas… E foi nesta base que a DMB Portugal foi criada e consolidada com o passar dos anos. Tudo em nome da partilha. Tudo porque este simples gosto por uma banda já não é suficiente e já parece tão pobre se não for partilhado com os restantes amigos. Para mim, sei que existe uma vida antes de 2007 e outra depois de 2007, pois foi este o ano do nascimento desta comunidade. É uma comunidade que tem dado algum trabalho, mas principalmente muito gosto quando estamos em sintonia, quando vemos os nossos amigos a trabalhar, a dar de si, só porque quer ver os outros felizes. É, sim, uma espécie de altruísmo. Mas, acima de tudo, de companheirismo.

Em 2007 fiquei na primeira fila com o meu irmão, comentámos e reagimos à la pita histérica aos primeiros acordes da #41. Fui uma sortuda por ter podido assistir ao LeRoi Moore ao vivo, músico que acabaria por falecer um ano depois. Recebi uma baqueta das mãos do Carter Beauford. Emocionei-me com a Greystreet. Foram 3h30 que me fizeram cãibras nos músculos faciais de tanto sorrir (mentira, isso não aconteceu, mas faz de conta para efeitos de hiperbolização da coisa :p). É que não é todos os dias que assistimos à nossa banda preferida ao vivo. É estranho dizer-se isto quando vivemos tempos em que todas as bandas passam por terras lusas, onde os festivais de verão já são mais eventos sociais do que outra coisa e onde se assiste a uma banalização da vivência do concerto, pois o que interessa é ficar registado nas redes sociais, é tirar aquela foto de costas para o palco, é fazer o check-in para que as outras pessoas vejam que lá estão. “Olhem para mim, olhem para mim, sou tão cool por aqui estar”.

Mas é verdade, não é mesmo todos os dias que assistimos à nossa banda preferida ao vivo, mas melhor do que isso vim eu a descobrir mais tarde quando pude assistir à minha banda preferida ao vivo acompanhada de Amigos que a vivem da mesma forma que eu.

E tudo por causa de um fórum…

 

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À sexta-feira estou… a oferecer flores e a fazer vénias à BBC pela transmissão da série “The Hollow Crown”- A guerra das rosas

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Provavelmente muito poucos fãs da popular série “Guerra dos Tronos” saberão que o escritor George R.R. Martin se inspirou nos factos históricos da “Guerra das Rosas” (a guerra de 30 anos que teve lugar em Inglaterra no séc. XV entre as casas de Lencastre e Iorque) para escrever os seus livros mundialmente famosos. As suas temáticas que exploram as lutas de poder, a política, a governação, a ética, a filosofia e a moral, que hoje em dia tanto impressionam os seus leitores, têm uma base histórica real que Shakespeare também já tinha explorado nas suas peças.

A série de televisão “The Hollow Crown- Série 2” é uma adaptação da BBC em 3 episódios de 2 peças de Shakespeare: Henrique VI e Ricardo III que focam este período histórico (sendo justo também reconhecer que a própria série de televisão “A Guerra dos Tronos” influenciou esta adaptação televisiva).
O texto de Shakespeare foi praticamente reduzido quase só ao enredo, cortado pelo dramaturgo Ben Power com uma precisão cirúrgica brilhante que não deixa cicatrizes na obra original. O essencial está lá: a luta sanguinária pelo poder, os dramas individuais das personagens, o pouco valor da vida humana e o peso da responsabilidade e da solidão que a coroa traz a quem a usa. Graças à excelente realização de Dominic Cooke a acção avança a um passo rápido e seguro sem nunca se perder o fio à meada. As peças foram actualizadas e modernizadas sem tirar qualquer brilhantismo à história e à linguagem de Shakespeare.

No início do primeiro episódio conhecemos o futuro rei Henrique VI que tem apenas 9 meses quando o seu pai Henrique V morre, deixando-lhe o trono de Inglaterra (um peso muito grande para pôr sobre os ombros de um bebé).
Ao contrário do seu pai que era um estratega e um militar, Henrique VI cresce a detestar a guerra e os conflitos, abomina a violência sem sentido, sofre com os actos de crueldade a que assiste e sente sempre o peso da coroa como um espinho cravado no coração. O actor Tom Sturridge (que eu só conhecia do filme “O Barco do Rock”), é a maior surpresa desta série: a sua interpretação é um portento de contenção e fragilidade a dar corpo a Henrique VI, um ser humano admirável, pacifista, conciliador que tenta ser aquilo que todos esperam dele mas que no fim como rei é sempre demasiado inseguro, pouco pragmático e muito influenciável.

 

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Como se já não tivesse problemas de sobra na sua vida, Henrique ainda escolhe casar com a francesa Margarida de Anjou (outra interpretação magnífica da actriz Sophie Okonedo) uma mulher ambiciosa, com um espírito aguerrido que depressa se torna na mão que está atrás das suas “decisões”.

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A pouco e pouco vimos Henrique ficar cada vez mais isolado, perdendo todas as pessoas em quem confia e à mercê dos que o querem usar. É impossível não nos emocionarmos com o seu sofrimento, quando ele chora a morte do seu tio o Duque de Gloucester (Hugh Bonneville) às mãos da rainha e do seu amante Sommerset. Desagradados com a personalidade do rei e com a influência da rainha Margarida, os nobres ingleses vão conspirar para a sua substituição, apoiando a casa de Iorque nas suas pretensões à coroa dando assim início à Guerra das Rosas.

No segundo episódio da série continuamos a assistir à história que vai seguir de perto o percurso dos 2 homens que dão nome às peças: o lento declínio de Henrique VI (o homem que dava tudo para não ser rei de Inglaterra) e a formação do tirano sanguinário Ricardo (Benedict Cumberbatch) o homem que quer ser rei de Inglaterra a qualquer custo.

Enquanto os actos de violência, as traições e as crueldades destroem Henrique no seu íntimo porque vão contra tudo aquilo que ele é (belíssima a cena em que Henrique perde a razão ao ver aquilo que mais ninguém consegue ver: a Inglaterra a destruir-se a si própria com as suas guerras internas), Ricardo por seu lado é um sádico que tem um prazer doentio com a morte, que adora provocar dor e sofrimento nos outros e não tem remorsos nenhuns pelas suas acções.

Cumberbatch tem outra extraordinária interpretação desvendando-nos lentamente as diversas camadas de ressentimento e crueldade que se escondem na alma deste tirano vingativo em ascenção. RicardoIII (um dos maiores vilões da obra de Shakespeare e um dos reis mais populares de Inglaterra entre os historiadores pela sua personalidade dúbia) fala cinicamente à câmara e aos espectadores revelando os seus pensamentos e convidando o público a partilhar da sua lógica retorcida: se Deus o criou como um monstro fisicamente deformado (Ricardo sofria de escoliose idiopática, uma deformação vertebral) ele não tem outro remédio senão transformar-se num.

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“I am myself alone”- confidencia aos espectadores enquanto sobe à torre de Londres para matar o rei Henrique.

“Mata-me com as tuas armas e não com as tuas palavras!” pede-lhe Henrique. E Ricardo mata-o com frieza, a mesma frieza que vai ter para beijar o seu sobrinho recém nascido e próximo herdeiro da coroa enquanto confidencia aos espectadores com um sorriso que nos gela a espinha (até porque sabemos o que ele vai fazer aquela criança) que “Judas também beijou Jesus”!

Amanhã será transmitido o último (e dizem que ainda melhor) episódio da série: veremos Ricardo III em toda a sua glória tirânica a subir ao poder e a afastar um a um (homens, mulheres e crianças) todos os que se encontram entre si e o trono de Inglaterra – para finalmente o vermos também acabar os seus dias na Batalha de Bosworth, a oferecer desesperado todo o seu reino em troca de um simples cavalo para escapar aos seus inimigos.

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Mas independentemente de tudo a BBC já está de parabéns.  Talvez seja uma utopia acreditar num mundo onde as pessoas prefiram ver Shakespeare ao Festival da Eurovisão. Mas a BBC acredita. Contra tudo e contra todos continua a bater-se por fazer serviço público, tentando preservar para as gerações futuras tudo o que sustenta a identidade e a cultura do seu país.

Se houver justiça, a esta série todos os reconhecimentos serão devidos e todos os futuros prémios mais que merecidos.