Stranger things

Stranger Things é uma série de televisão americana de ficção científica e fantástico criada, escrita e realizada pelos irmãos Matt e Ross Duffer. A história tem lugar em 1983 na pacata cidade de Hawkins no estado de Indiana, quando Will o filho de Joyce (Winona Ryder) desaparece misteriosamente. Paralelamente às buscas da polícia, os amigos do rapaz desaparecido: Mike (Finn Wolfhard), Lucas (Caleb McLaughlin) e Dustin (Gaten Matarazzo) decidem fazer uma investigação por conta própria e acabam por descobrir experiências ultras-secretas do governo, forças sobrenaturais e uma menina estranha, que possui uma tatuagem com o número onze no pulso.

Antes de mergulhar de cabeça na terceira temporada de Stranger Things, eis 5 razões que explicam o porquê do sucesso daquela que é sem dúvida até à data, a melhor série original da Netflix:
1- Argumento excelente, ritmo impecável e duração perfeita (a primeira temporada tem 8 episódio e a segunda tem 9)
Ao contrário das séries da TV cabo de longa duração com temporadas extensas e intermináveis, onde há “fillers” (como são chamados os episódios feitos para encher chouriços e preencher os buracos narrativos entre um evento e outro na mesma temporada), em Stranger Things todos os episódios são necessários para contar a história. Há uma narrativa com princípio, meio e fim, uma história compacta e completa – que nos dá a sensação de estarmos a ver um longo filme.
2- O talento, a cumplicidade e a inacreditável química do elenco adulto e do elenco infanto-juvenil

Dustin, Mike, Will e Lucas, os nossos heróis.

A começar por Winona Ryder (espectacular no papel da mãe desesperada) e David Harbour (no papel do atormentado Xerife Hopper) a acabar nos miúdos que são os verdadeiros protagonistas, Stranger things é servida por interpretações excelentes de um grande elenco, com uma inacreditável química e uma cumplicidade que se estende aos espectadores como há muito não se via numa série de tv.

3- Cinematografia e Direcção de Arte, a nostalgia dos anos 80

Passada em 1983 e 1984, a série é uma verdadeira declaração de Amor aos anos 80 e à infância dos seus criadores com muitas referências à cultura Pop da época. Dos jogos de computador Atari às roupas, cabelos e banda-sonora, as inúmeras referências levam o público numa viagem nostálgica pelo tempo, homenageando clássicos do cinema fantástico como Poltergeist, E.T., Evil Dead, Gremlins, Ghostbusters e Os Goonies. No entanto, apesar de ser divertido identificar as inúmeras referências aos filmes de fantasia dos anos 80, essas referências são meros marcos, não se duvide que Stranger Things recria o género mas simultaneamente cria o seu próprio universo original conseguindo ela própria ter um culto merecido e conquistar mesmo uma nova geração de espectadores do século XXI que não tem, quaisquer referências dos anos 80.

4- A perfeita manipulação das nossas emoções e medos

Steve e Dustin a caçar Demogorgons (com cabelos impecáveis) desde 1983!

Não é fácil casar humor, mistério, suspense e terror e embrulhar tudo no drama com esta mestria. Entramos em Stranger things curiosos pelo mistério que há para desvendar, mas ficamos porque nos conseguimos ligar emocionalmente às personagens, deslumbrados pela força da amizade de Will, Mike, Lucas e Dustin que nos fazem rir com eles, e com cada citação a Star Wars e a Dungeons & Dragons, e nos comovem com cada abraço, lágrima e vitória.

5- O regresso do nosso olhar inocente

Numa era em que os efeitos especiais e os efeitos visuais atingiram uma sofisticação inimaginável nós espectadores do séc. XXI já dificilmente nos deixamos surpreender e muito menos deslumbrar por quaisquer efeitos que nos sirvam, e eis que os irmãos Duffer nos lembram algo que já tínhamos esquecido sobre nós próprios como espectadores: a inocência assusta-nos mais que a sofisticação.
As crianças de Stranger Things têm as mentes abertas e as suas imaginações ainda não foram afectadas pelo cinismo ou “corrompidas” pela experiência da vida. Todos nos identificamos com elas ou pelo menos no caso dos adultos mais sofisticados, a nossa criança interior identifica-se com eles e vimos o mundo através dos olhos deles. (Sem a voracidade da internet, a intrusão dos smartphones, e a distracção das conversas e discussões intermináveis e banais nas redes sociais, encontramos/reencontramos os grupos de amigos em pessoa, brincamos na rua, andamos de bicicleta e passamos tardes a jogar jogos de tabuleiro e a alimentar a imaginação e o faz-de-conta).

Pequena obra prima cheia de amor pela cultura pop, pela ficção científica e pelos anos 80 (década de ouro para a própria ficção científica no cinema, quando Hollywood fervilhava com ideias e possibilidades e havia sempre excelentes filmes para toda a gente ver e realizadores criativos e ansiosos por puxar pela imaginação do público).
Como nenhuma outra série Stranger Things captura a nossa imaginação, transmite e homenageia esse espírito de inocência, curiosidade e descoberta da infância. Muitos tentaram, mas só os irmãos Duffer conseguiram.

No ano em que se encerram as sagas de Game of Thrones, Vingadores e Star Wars e antes de mergulhar na terceira série de Stranger things uma coisa é certa: tão cedo não haverá uma época incrível como esta para se ser apreciador de cultura geek-pop.

Dos Heróis, Super-heróis, Anti-heróis e das pessoas comuns (ou como o Prisioneiro nr. P50522 se tornou no actor mais bem pago da história do cinema)

Um dos rumores de “casting” mais engraçados que circulam na Internet (e se está na Internet tem de ser verdade) é aquele que conta que há 12 anos atrás o actor Tom Cruise esteve quase, quase a ser escolhido para interpretar o papel do “Homem de Ferro”.
Dizem as más línguas que a única coisa que impediu a contratação de Cruise (que a Marvel queria a todo o custo) foi uma simples questão de vaidade: para aceitar interpretar o Homem de Ferro, Cruise exigia uma coisa impensável: que durante o filme inteiro a sua cara estivesse sempre visível para o público (o que significava que a icónica máscara do “Homem de Ferro” teria que ser transparente para acomodar esta pretensão). Abalados e chocados com esta exigência os produtores do filme terão desistido de Tom Cruise.

Reza a lenda que o realizador do filme Jon Favreau, sugeriu então o nome do polémico Robert Downey Jr. para o papel ao que Marvel terá respondido: “Nunca! Jamais! Sob nenhuma circunstância estamos preparados para contratá-lo, por nenhum preço!”

Paciente, Favreau convenceu a Marvel a considerar Downey Jr. prometendo que ele faria pela sua saga o que Johnny Depp tinha feito por Piratas das Caraíbas: dar ao personagem uma energia e uma densidade que só poderia vir de um actor marginal forjado no cinema Indie. Downey Jr. fez um teste de casting, e a partir daí a Marvel já não pode considerar outros actores. Estava escolhido Tony Stark AKA o Homem de Ferro.

Nunca saberemos ao certo o que há de verdade nesta história (que os fãs do Universo Cinematográfico da Marvel adoram), mas facto comprovado é que em Abril de 2007 o jornal “USA Today” criticava assim a escolha polémica do então altamente polémico actor para o papel de Tony Stark:

Muito dificilmente um actor como Robert Downey Jr. seria uma escolha óbvia para interpretar um icónico combatente do crime.”

11 anos, 22 filmes, 20.3 billiões de dólares, mais tarde é difícil uma pessoa acreditar que alguém alguma vez escreveu uma coisa destas (sobre aquela que é provavelmente a escolha de casting mais inspirada de sempre). Mas a verdade é que na altura em que foi escolhido para interpretar o Homem de Ferro, o hoje em dia (quase) universalmente amado e incontestado RDJ era um actor com quem ninguém queria trabalhar, escolhido para interpretar o papel de um super-herói da Marvel que quase ninguém conhecia, num filme que muito pouca gente tinha interesse em ver.

Durante muitos anos, esta era a imagem que Hollywood (e o mundo) tinha de Robert Downey Jr: a do cadastro policial (foto tirada na primavera de 2001, quando ele foi preso por posse de drogas).

Toda a sua vida o grande talento natural para a representação de Downey JR. andou sempre de mãos dadas com a sua tendência para auto-destruição. O mesmo Actor que nos anos 80 a imprensa sentenciava que estava “destinado a ser o melhor actor da sua geração”, em 1996 aparecia nas capas dos jornais como “mais um viciado em drogas de Hollywood“. Em 2001 batia no fundo preso pela terceira vez o outrora nomeado a um Óscar da Academia por interpretar um inesquecível “Chaplin” ganhava oito centavos de dólar por hora esfregando tabuleiros de pizza. O “melhor actor de sua geração” era agora o prisioneiro nr. P50522. “Nunca contarei as piores coisas que me aconteceram na prisão” contará mais tarde RDJ.

É um facto que Hollywood adora as histórias de declínio e superação, mas nenhuma outra supera a história da vida real do actor da saga ‘Homem de Ferro’, ela própria digna de um filme da Disney.
Reza a lenda que no Dia da Independência de 2003, Downey Jr. parou num Burger King numa estrada da costa do Pacífico e enquanto comia um hambúrguer teve uma epifania. Decidiu que já chegava e atirou todas as suas drogas ao mar. Conta o próprio que o Pilates, a Filosofia Oriental, a Meditação, o Kung-fu canalizaram sua síndrome de abstinência, e a terapia e o amor da sua mulher Susan Downey ajudaram-no a ultrapassar o vício que ele descreveu como “ter uma caçadeira enfiada na boca e adorar o sabor do óleo que escorre da arma”.

Downey Jr. que aos 6 anos fumava o seu primeiro charro (oferecido pelo seu pai), aos 28 anos recebia a sua primeira nomeação para um Óscar e aos 31 acordava na prisão numa poça do seu próprio sangue é aos 54 anos um dos actores mais bem pagos da História do cinema. (Recebeu meio milhão de euros por Homem de Ferro, com um contrato que abrangia duas possíveis sequências, com as quais acabou por ganhar 9 milhões de euros e 28 milhões de euros respectivamente. Entre 2013 e 2015 ocupou o primeiro lugar na lista da revista Forbes, mantendo-se nas primeiras posições nos últimos anos. E após receber 75 milhões de dólares pelo recente Vingadores: Endgame, segundo cálculos de jornais como o “The Guardian”, provavelmente voltará a encabeçar a lista de 2019).

Apesar de hoje em dia a Marvel jurar a pés juntos que escolheu para o seu primeiro filme o personagem do Homem de Ferro porque “Tony Stark era uma personagem única e diferente de qualquer outra personagem que até à altura tinha sido trazida para o ecran“, sabemos que a verdade é um pouco diferente: em 2007, quando a Marvel fundou a sua própria produtora de cinema, não tinha os direitos das propriedades intelectuais dos super-heróis mais populares da altura (como o Homem-Aranha e os X-Men), de modo que escolheu o Homem de Ferro simplesmente porque naquela altura o empresário arrogante Tony Stark/Homem de Ferro parecia ser o super-herói mais moderno, verosímil e barato de produzir.

O resto é história. Contrariando todos os vaticínios, o filme Homem de Ferro foi um sucesso comercial e daria início aquele que é um dos franchises de maior sucesso do mundo cinematográfico da actualidade. O filme foi rodado sem um guião fixo (o realizador Favreau concebeu o filme “como se fosse Robert Altman a realizar um filme de super-heróis”) o que, permitiu a RDJ no papel do engenheiro, narcisista bilionário Stark improvisar muitas das suas falas e disparar as mesmas com a elegância e energia caótica de um músico de jazz. Downey Jr. agarrou o papel de Tony Stark com unhas e dentes com o seu charme e sarcasmo, personificando o carisma conflituoso de Stark deu também ao papel nuances de profundidade dramática e uma introspecção e um pathos que não se viam habitualmente num super-herói. Sempre na medida certa, a sua actuação acaba crescendo no decorrer do filme e demonstra, de maneira exímia, o brilho inerente à sua personagem. ( A máscara de ferro não conseguiu conter a personalidade de RDJ).

(Robert Downey Jr. in ‘Homem de Ferro’, 2008)

A audiência viu isso tudo e intuiu o resto: RDJ era Tony Stark e Tony Stark era RDJ (não se sabendo muito bem onde começa um e acaba o outro) e amou o Homem de Ferro talvez porque ao contrário dos super-heróis tradicionais ele era realista, relacionável, mas muito imperfeito e estava carregado de contradições (tal como o próprio Robert Downey Jr.)

Na antítese do Capitão América (ou do Super-Homem), o Homem de Ferro não era perfeito, nem heróico, nem tão pouco reflectia os valores mais elevados da sociedade americana.
Tony Stark (tal como RDJ) era sim o anti-herói perfeito – isto é, um protagonista que tinha aspectos da moralidade que tradicionalmente associamos aos antagonistas. Tão falho ou mais falho que um vilão, apesar de ser retratado com simpatia, ampliava as fragilidades da humanidade e tocava os espectadores com as suas fraquezas.

RDJ tal como Tony Stark cresceu sobre a luz dos holofotes, os seus erros e as suas falhas eram sempre publicas e largamente publicitadas e microscopicamente escrutinados pela imprensa e público. Ambos usavam uma Persona pública de arrogância, egoísmo, e auto-confiança excessiva como uma capa/ fachada para esconder as suas muitas inseguranças. Mas nenhum outro paralelismo biográfico entre personagem e actor é tão arrepiante como o da herança parental da masculinidade tóxica de ambos: nos livros de banda desenhada é Howard Stark o pai de Tony quem lhe oferece a primeira bebida da sua vida (e lhe transmite o “legado” do alcoolismo, a maldição dos Stark), na vida real foi o pai de Robert Downey Jr. quem o iniciou no consumo de drogas (a longa batalha da vida do actor) quando este tinha apenas 6 anos. “Quando eu e o meu pai nos drogávamos juntos, era como se ele tentasse expressar seu amor da única forma que sabia”, confessou o actor no livro The New Breed: Actors Coming of Age.

É essa herança da masculinidade tóxica de Tony Stark (a ideia cultural profundamente enraizada de uma masculinidade onde a força é tudo e as emoções são consideradas uma fraqueza) que tornam Tony Stark na personificação do que seria a ideia ocidental do que é um ” verdadeiro homem” um homem que é uma criança, narcisista, mimada, indulgente e privilegiada que está profundamente convencido que o mundo gira à sua volta. Até ao dia em que descobre que não gira. A verdadeira medida do carácter de um homem, descobre Tony Stark é tomar responsabilidade pelos seus actos.

Se quisermos intelectualizar o universo cinematográfico da Marvel ( e eu pessoalmente não quero outra coisa) podemos dizer que os Americanos gostam de se rever na imagem idealizada do Capitão América (um miúdo introvertido de Brooklyn que se torna grande para lutar e morrer por ideais de Verdade, Justiça e Liberdade), mas na realidade a América está muito melhor reflectida no arrogante bilionário, génio brilhante Tony Stark, com os seus imensos defeitos de carácter e passado obscuro como vendedor de armas, o produto de uma educação masculina tóxica (carregado de inseguranças e medo, obcecado com o domínio e a conquista).

O Capitão América é sempre idealmente virtuoso, justo e recto. Tem excelência moral de carácter e está comprometido com os mais altos princípios éticos. Por outro lado, Tony Stark, mesmo depois de se tornar num super-herói, ainda continua a ser um herói incompreendido, extremamente imperfeito, emocionalmente perturbado, cheio de dúvidas e conflitos interiores, a lutar contra a Ansiedade, ataques de pânico e stress pós-traumático, e ainda assim com toda esta bagagem emocional continua a ser sempre irritantemente persistente, altamente motivado e surpreendemente altruísta (ao ponto de dar a sua vida pelos outros sem hesitar).

Tudo isto faz dele um dos mais complexos e interessantes super-heróis da Marvel- e para mim, que não gosto nada de heróis ou super-heróis perfeitos foi um prazer absolutamente viciante e educativo ver o melhor e o pior da (minha ideia da) América reflectidos nele e como num espelho.

11 anos, 22 filmes e muitos billiões de dólares mais tarde, já pouco resta da ingenuidade, simplicidade e improviso do primeiro filme da Marvel. O Universo Cinematográfico da Marvel transformou-se numa perfeita afinada e super-potente máquina de Marketing, e Publicidade (e por muito que custe admitir a alguns bom cinema), mais perfeita que o Reactor Nuclear Compacto que esteve no peito de Tony Stark. Tem a sua Mitologia própria, a sua história e carrega o seu passado com orgulho. E o Homem de Ferro, o seu coração teve o arco narrativo perfeito e o desenvolvimento de personagem mais bem estruturado e bem construído que alguma vez foi dado a um super herói.

O carisma inefável de Downey Jr. que muitos reivindicam mas muito poucos têm, o seu “good look” americano (de ascendência irlandesa-russa e alemã- escocesa), e um mais que reconhecido talento de actor com “A” maiúsculo, conjugam-se para que ele seja uma das últimas grandes figuras de Hollywood das quais se pode dizer, como antes dele se disse de um Paul Newman ou de um Errol Flynn que têm uma espécie de universalidade, e grandeza maior que as personagens que interpretam e mesmo quando os filmes não são bons (e Homem de Ferro II e III ficam aquém) são magnéticos e tocantes e como só os grandes actores/estrelas conseguem ser.

No entanto, apesar do sucesso mundial, da superação dos vícios e dos muitos milhões na conta bancária havia uma vozinha na minha cabeça que teimava em considerar que o Homem de Ferro (e um punhado de outros grandes papéis, entre os meus preferidos os dos filmes: Chaplin; Zodiac; Tropic Thunder; Natural Born killers; Kiss kiss bang bang; The soloist; O detective cantor;) não chegavam para montra do talento de RDJ. Queria te-lo visto ainda em mais papéis poderosos e emblemáticos e especialmente a contrapelo da sua imagem, mas essa voz calou-se quando viu a sua cena final em Vingadores: Endgame.

Certamente não é Shakespeare,Tennessee Williams ou Beckett.
Mas é um actor completo num controle total da sua arte, num grande momento de interpretação, numa despedida peculiarmente filosófica e melancólica .
Naquela que é a sua cena final deste “mero” filme de super-heróis Downey Jr. torna-se maior que a sua personagem e absorve-a ao chamá-la a si e transforma o seu papel nos filmes da Marvel numa grande aula de representação. E nós só nos apercebemos que ele a deu quando a ficha técnica está a passar no final do filme e à espera da cena pós-crédito ouvimos o som de um metal a bater em metal, numa homenagem a Tony Stark quando este sequestrado por terroristas e prisioneiro numa caverna no Afeganistão, forjou a primeira armadura do Homem de Ferro.

(Novo filme ‘Spiderman- Far from home’: O mundo chora a morte do Homem de Ferro).

Se quiser (e estiver para isso) Robert Downey Jr. ainda tem muito para dar ao Cinema, mas mesmo que não faça mais nada, se for “só” este o seu legado, que tremendo legado.

Vingadores- Guerra do Infinito (como pode ser bom o grande cinema de entretenimento)

Não me recordo da última vez que entrei numa sala de Cinema com tanto receio de ver um filme (e não gostar).

Se calhar é porque me dizem que estou prestes a testemunhar um momento verdadeiramente histórico e apoteótico em termos de cinema de entretenimento. Ou porque fazem questão de me informar (diversas vezes) que “Infinity War/Guerra do Infinito” é o culminar de 10 anos de história no Universo Cinematográfico da Marvel. Estes factos não só não me impressionam muito, como não fazem nada para acalmar os meus receios, mas como tenho crianças vestidas com t-shirts do Capitão América e do Homem-Aranha sentados ao meu lado no cinema em grande excitação, tento disfarçar a minha descrença e falta de entusiasmo.

Contam-me também que este Guerra do Infinito é já o terceiro filme da saga dos Vingadores e esse facto ainda me deixa mais receosa – como não vi os outros filmes dos Vingadores não sei se vou conseguir apanhar a história que está para trás. Mas de facto, não tenho grande dificuldade em fazê-lo. Apesar de entrarmos no filme a meio de uma narrativa, a história não precisa de grandes introduções para se apanhar logo o fio à meada: há um Vilão (Thanos) que acabou de destruir o planeta-natal do Deus Trovão Thor para roubar a Pedra da Realidade e não descansará enquanto não tiver reunido todas as Pedras do Infinito além desta: Poder, Tempo, Mente, Espaço, e Alma. Quem conseguir reunir todas as Pedras possuirá o controlo total sobre o universo, obviamente todos os super-heróis da Marvel vão unir esforços para tentar impedir o vilão de o conseguir.

A céptica em mim simplesmente não acredita que vão caber ali naquele filme tantos super-heróis (26!), tantos efeitos especiais, tanta expectativa, e tanta história sem se atropelarem personagens, narrativas e universos.
São muitas incógnitas e muitas variáveis. É impossível isto resultar.

E este é o meu primeiro equívoco.
Com surpresa, admito que os 2 argumentistas de Guerra do Infinito (Christopher Markus e Stephen McFeely) são extremamente habilidosos na tarefa de equilibrar tantas figuras na história fazendo ali a única coisa que se pode fazer num caso como este: dividir os super-heróis em super-equipas que se juntam por força das circunstâncias e das necessidades. Dão as cartas, baralham e voltam a dar e conseguem que a narrativa flua de modo exemplar do drama, para a comédia, para a acção sem que nunca se perca o fio condutor da narrativa e sem que as personagens percam o humor característico de cada uma e principalmente, mantenham o respeito pelas personalidades/identidades previamente estabelecidas nos filmes em nome próprio (o que me parece um grande feito) e no caso de alguns deles como: Gamora, Ironman, Dr. Strange e Thor conseguem mesmo que haja um crescimento/desenvolvimento de personagem extremamente interessante e bem conseguido (outro dos grandes méritos do filme).
A fórmula para misturar todos estes ingredientes com equilíbrio, graça e inteligência parece fácil, e no entanto, o universo DC e o universo Star Wars não o conseguiram fazer!

As divisões de super-heróis em super-equipas (muitas vezes as mais improváveis como a equipa Thor/Rocket/Groot) causam interacções inéditas, sequências divertidissímas, piadas e diálogos hilariantes e fricções de personalidades extremamente engraçadas como Ironman/Dr.Strange, Thor/Quill e mais tarde Iron/Strange/Spiderman e os Guardiões da Galáxia que fazem rebentar o cinema de riso.

Ninguém fica esquecido e todos têm direito ao seu momento para brilhar na Guerra do Infinito. Até o manto da levitação do Dr. Strange, uma relíquia que é senciente (isto é, tem a capacidade de sentir sensações e sentimentos de forma consciente) e tem a sua personalidade, vontade-própria (foi ele que escolheu o “dono” Dr. Strange e não o contrário) demonstra as suas opiniões e lendário mau feitio ao fazer aquilo que quase todas as personagens no universo Marvel querem secretamente fazer (mas não se atrevem)- dar uma merecida palmada a Tony Stark/Ironman (Robert Downey Jr).

No momento em que a equipa Ironman/Dr. Strange/Spiderman entra em acção já estou a gostar do filme. Esta equipa que junta dois dos meus actores preferidos, tem o papel mais preponderante no filme (e será aquela que também terá os momentos dramáticos mais importantes). As interacções entre as 3 personagens são hilariantes: Ironman pergunta ao Feiticeiro Supremo Dr. Strange o que é que ele faz mais além de encher balões em festas de crianças, e Dr. Strange (naquela que é para mim a melhor piada do filme) pergunta a Ironman qual é exactamente a natureza da sua relação com o Homem Aranha, se ele é o seu “protegido”. Insinuando não só uma relação gay entre estes 2 mas fazendo também piada à DC (e à relação de Batman e Robin).

É grande a química entre RDJ e Cumberbatch e é difícil uma pessoa não se rir com choque de personalidades e embate dos egos gigantescos de Ironman e Dr. Strange- cada um a tentar provar que está menos impressionado com o outro do que realmente está- tal como é igualmente difícil não nos deixarmos contagiar pelo entusiasmo juvenil do Homem-Aranha (Tom Holland) por finalmente o deixarem pertencer aos Vingadores (e por estar numa nave espacial em forma de Donut, com o Ironman a tentar salvar o Dr. Strange e a pedra do tempo de um alienígena com cara de lula).

A partir desse momento do filme já não sei bem o que está a acontecer comigo porque quando o Capitão América tem a sua entrada triunfal à super-herói saindo da sombra para salvar Vision (que tem a Pedra da Mente)e Scarlett Witch) e a audiência no cinema desata a aplaudir esta entrada- eu em vez de rolar os olhos por essa manipulação óbvia dos Irmãos Russo – já estou a aplaudir com mais força que eles e quando T’Challa o jovem rei de Wakanda entra em cena, só uma grande força de vontade me impede de gritar “Wakanda Forever”.
Suponho que estou a ser vítima da magia do poder do Universo cinematográfico da Marvel.

Mas há muitas outras cenas deliciosas que se podem ver em ‘Infinity War’ , algumas grandiosas outras hilariantes que vale a pena listar porque se piscarmos os olhos corremos o risco de as perder:

– As dificuldades de “performance” de Hulk durante o filme inteiro;

– A piscadela de olho incrivelmente provocadora de Dr. Strange a Tony Stark e o esgar de resposta deste.
– A indignação “como te atreves a falar assim com o teu pai” do manto da Levitação de Dr. Strange quando o Homem-Aranha “responde” a Tony Stark;
– Ironman e Homem-Aranha salvarem Dr. Strange reencenando uma cena famosa do filme Alien;
– o medo que o Homem-Aranha tem de extra-terrestres;
– Os ciúmes que Peter Quill tem da masculinidade de Thor;
– Groot a sacrificar um braço para salvar Thor e o seu martelo;

– As tentativas frustradas de Tony Stark para liderar e organizar uma estratégia e um plano de ataque com os caóticos e desorganizados Guardiões da Galáxia;

– Toda e qualquer cena em que entram os Guardiões da Galáxia;

O meu segundo equívoco foi acreditar que num filme de super-heróis, o vilão roxo Thanos não teria grande profundidade ou densidade psicológica. Outro engano porque os escritores e realizadores de Infinity War esfalfaram-se à séria para garantir que Thanos(Josh Brolin) fosse mais que o óbvio e previsível vilão mauzão unidimensional dos desenhos animados (que seria tão fácil meter aqui).
Não só em termos de utilização do CGI- Thanos é uma personagem visualmente tão “real” quanto as outras personagens humanas- mas principalmente pelo estudo de carácter e personalidade, que pretende fazer-nos entender as razões e motivações que estão por trás do seu comportamento. É muito pouco habitual ter-se este cuidado e preocupação num filme de super-heróis. (Parece óbvio e fácil mas lembremo-nos que o filme que ganhou este ano Oscar de melhor filme do ano “A forma da água” não o conseguiu). Por isso uma grande vénia ao Vilão Thanos- não só um grande vilão Marvel mas certamente um dos mais interessantes que se viram nos últimos anos no cinema.

E é esta a verdade sobre Guerra do Infinito: mesmo quem não seja fã dos 18 filmes Marvel, desconheça toda a história anterior do seu Universo Cinematográfico e nunca tenha visto um único filme de super-heróis na sua vida terá muita dificuldade em não gostar (nem que seja só um bocadinho) desta Guerra do Infinito. Simplesmente não é possível servirem-nos um filme de entretenimento deste calibre, a esta escala monumental, com este cuidado e rigor narrativo, com esta inteligência nos diálogos e nas piadas sem que nos arranquem no mínimo um sorriso e uma gargalhada sincera e na melhor das hipóteses sem que nos façam gostar destas personagens e sofrer com elas.

Eu que não sabia praticamente nada sobre a Marvel, confesso que sofri por Tony Stark/Ironman (o homem que tem tudo e não tem nada) que vi confessar no início do filme que quer ter um filho e vi acabar o filme com o seu filho adoptivo a morrer-lhe nos braços.

Vi o vilão Thanos sacrificar a vida da sua filha por uma Pedra, o que reflecte a acção oposta do Dr. Strange que sacrifica uma Pedra para salvar uma vida (a de Tony Stark) e tendo ainda visto os 14.000.605 cenários possíveis futuros sacrifica-se a si próprio para salvar o Universo. (Espero que depois disto a Ben and Jerry’s tenha a cortesia de criar um sabor de gelado com o nome dele, que seja mais delicioso que o ‘Stark Raving Hazelnuts’ ou o ‘Hulk-A-Hulk-A-Burning-Fudge’ juntos!).

De facto sei muito pouco sobre este universo mas sei o suficiente sobre histórias para saber que essas grandes decisões e escolhas morais interessantes serão absolutamente decisivas e importantes no próximo filme dos Vingadores e a longo prazo farão os Vingadores ganhar a Guerra contra Thanos.

Por último, sei que se o multi-milionário Tony Stark, CEO da empresa Stark Industries tivesse tentado explicar a Thanos que a transformação das sociedades é feita através da distribuição equilibrada de riquezas, recursos e propriedades e não através do Genocídio selectivo talvez se tivessem evitado todas estas chatices.
Mas nesse caso, eu também não me teria divertido tanto quanto é possível uma pessoa divertir-se numa sala de cinema, nem nunca teria visto um filme de super-heróis que me fizesse ficar a pensar tanto nele depois de o ver e a ponderar em todas as suas questões morais, sociais e filosóficas

#Tudoaprecisardemassagensnoego

Antes de existirem as redes sociais, onde é que as pessoas manifestavam gratuitamente as suas ofensas, certamente os jogos de futebol não seriam o suficiente, muito menos o trânsito, pois esses fenómenos continuam a existir? Onde é que exaltavam o seu massivo (ou compensavam o seu frágil) ego engrandecendo-o através da partilha de selfies seleccionadas de uma palete delas, pois as 156 anteriores não favoreciam o seu melhor lado? Onde é que iriam buscar a validação dos seus amigos através de likes e partilhas? Ou o que é que nos salvava da nossa própria apatia, estando sozinhos ou acompanhados? Não íamos aos bolsos buscar um telemóvel num gesto praticamente automático e não tínhamos como nos isolar do mundo real, passando de um mundo onde as coisas se passam vagarosamente para um mundo onde tudo se passa a uma velocidade atroz, com a partilha de tudo e de todos, a toda a hora e em qualquer lugar. Quão aborrecida é a vida quando a vivemos ao seu ritmo e nos deixamos simplesmente estar. Seja com o o outro ou connosco. Passamos assim de uma existência, ainda que triste, para uma não-existência no momento em que o nosso cérebro se liga a um cabo invisível que faz a ponte para esse mundo virtual, deixando o corpo num estado zombieficado. Precisamos de estímulos como quem precisa de uma próxima dose de droga. É só ver se há mais alguma notificação. É só ver o que fulano de tal disse acerca do fenómeno x. É só ver o que aquela pessoa, aquele crush, aquele mundo anda a dizer ou a fazer, só para me sentir mais ligado no momento em que me desligo do que se passa à minha volta ou mesmo em mim. Ah, ter de me ligar a mim… isso às vezes é uma chatice. Mais vale adormecer os sentidos, mergulhar no virtual, e ocupar a mente com outras coisas que me afastem de mim.

Ver este vídeo de Louis C. K. acerca deste assunto.

O problema não está, é claro, nas redes sociais. Apenas são um ampliador que coloca à luz todas as fragilidades do ser. Sem filtros (ou por vezes com demasiados filtros). Como se o facto de ter uma ferramenta à minha frente que me permita dizer tudo aquilo que me passa pela cabeça me desse o direito de o dizer sem ter em consideração o Outro, partindo para ofensas gratuitas do alto da minha sabedoria e do meu achismo. Aliás, a facilidade com que isto se faz, a facilidade com que se parte para a ofensa, a facilidade com que nos ofendemos com tudo o que nos aparece no nosso newsfeed, a facilidade com que tudo se torna viral, mas apenas por meros instantes até aparecer o próximo assunto que mereça ser viral e nos faça esquecer de todos os outros mil assuntos contra os quais nos indignámos, partilhámos, sensibilizámos. Alguém se lembra? Eu não. É tudo volátil, é tudo fugaz e somos todos enormes por detrás de um teclado, numa realidade desvirtuada onde o que interessa é a manifestação de um Eu aumentado.
Não sei se de repente toda a gente passou a precisar de massagens no ego, de lições de respeito mútuo, ou se sempre precisaram e simplesmente não estava visível a olho nu.

À sexta-feira estou… a oferecer flores e a fazer vénias à BBC pela transmissão da série “The Hollow Crown”- A guerra das rosas

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Provavelmente muito poucos fãs da popular série “Guerra dos Tronos” saberão que o escritor George R.R. Martin se inspirou nos factos históricos da “Guerra das Rosas” (a guerra de 30 anos que teve lugar em Inglaterra no séc. XV entre as casas de Lencastre e Iorque) para escrever os seus livros mundialmente famosos. As suas temáticas que exploram as lutas de poder, a política, a governação, a ética, a filosofia e a moral, que hoje em dia tanto impressionam os seus leitores, têm uma base histórica real que Shakespeare também já tinha explorado nas suas peças.

A série de televisão “The Hollow Crown- Série 2” é uma adaptação da BBC em 3 episódios de 2 peças de Shakespeare: Henrique VI e Ricardo III que focam este período histórico (sendo justo também reconhecer que a própria série de televisão “A Guerra dos Tronos” influenciou esta adaptação televisiva).
O texto de Shakespeare foi praticamente reduzido quase só ao enredo, cortado pelo dramaturgo Ben Power com uma precisão cirúrgica brilhante que não deixa cicatrizes na obra original. O essencial está lá: a luta sanguinária pelo poder, os dramas individuais das personagens, o pouco valor da vida humana e o peso da responsabilidade e da solidão que a coroa traz a quem a usa. Graças à excelente realização de Dominic Cooke a acção avança a um passo rápido e seguro sem nunca se perder o fio à meada. As peças foram actualizadas e modernizadas sem tirar qualquer brilhantismo à história e à linguagem de Shakespeare.

No início do primeiro episódio conhecemos o futuro rei Henrique VI que tem apenas 9 meses quando o seu pai Henrique V morre, deixando-lhe o trono de Inglaterra (um peso muito grande para pôr sobre os ombros de um bebé).
Ao contrário do seu pai que era um estratega e um militar, Henrique VI cresce a detestar a guerra e os conflitos, abomina a violência sem sentido, sofre com os actos de crueldade a que assiste e sente sempre o peso da coroa como um espinho cravado no coração. O actor Tom Sturridge (que eu só conhecia do filme “O Barco do Rock”), é a maior surpresa desta série: a sua interpretação é um portento de contenção e fragilidade a dar corpo a Henrique VI, um ser humano admirável, pacifista, conciliador que tenta ser aquilo que todos esperam dele mas que no fim como rei é sempre demasiado inseguro, pouco pragmático e muito influenciável.

 

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Como se já não tivesse problemas de sobra na sua vida, Henrique ainda escolhe casar com a francesa Margarida de Anjou (outra interpretação magnífica da actriz Sophie Okonedo) uma mulher ambiciosa, com um espírito aguerrido que depressa se torna na mão que está atrás das suas “decisões”.

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A pouco e pouco vimos Henrique ficar cada vez mais isolado, perdendo todas as pessoas em quem confia e à mercê dos que o querem usar. É impossível não nos emocionarmos com o seu sofrimento, quando ele chora a morte do seu tio o Duque de Gloucester (Hugh Bonneville) às mãos da rainha e do seu amante Sommerset. Desagradados com a personalidade do rei e com a influência da rainha Margarida, os nobres ingleses vão conspirar para a sua substituição, apoiando a casa de Iorque nas suas pretensões à coroa dando assim início à Guerra das Rosas.

No segundo episódio da série continuamos a assistir à história que vai seguir de perto o percurso dos 2 homens que dão nome às peças: o lento declínio de Henrique VI (o homem que dava tudo para não ser rei de Inglaterra) e a formação do tirano sanguinário Ricardo (Benedict Cumberbatch) o homem que quer ser rei de Inglaterra a qualquer custo.

Enquanto os actos de violência, as traições e as crueldades destroem Henrique no seu íntimo porque vão contra tudo aquilo que ele é (belíssima a cena em que Henrique perde a razão ao ver aquilo que mais ninguém consegue ver: a Inglaterra a destruir-se a si própria com as suas guerras internas), Ricardo por seu lado é um sádico que tem um prazer doentio com a morte, que adora provocar dor e sofrimento nos outros e não tem remorsos nenhuns pelas suas acções.

Cumberbatch tem outra extraordinária interpretação desvendando-nos lentamente as diversas camadas de ressentimento e crueldade que se escondem na alma deste tirano vingativo em ascenção. RicardoIII (um dos maiores vilões da obra de Shakespeare e um dos reis mais populares de Inglaterra entre os historiadores pela sua personalidade dúbia) fala cinicamente à câmara e aos espectadores revelando os seus pensamentos e convidando o público a partilhar da sua lógica retorcida: se Deus o criou como um monstro fisicamente deformado (Ricardo sofria de escoliose idiopática, uma deformação vertebral) ele não tem outro remédio senão transformar-se num.

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“I am myself alone”- confidencia aos espectadores enquanto sobe à torre de Londres para matar o rei Henrique.

“Mata-me com as tuas armas e não com as tuas palavras!” pede-lhe Henrique. E Ricardo mata-o com frieza, a mesma frieza que vai ter para beijar o seu sobrinho recém nascido e próximo herdeiro da coroa enquanto confidencia aos espectadores com um sorriso que nos gela a espinha (até porque sabemos o que ele vai fazer aquela criança) que “Judas também beijou Jesus”!

Amanhã será transmitido o último (e dizem que ainda melhor) episódio da série: veremos Ricardo III em toda a sua glória tirânica a subir ao poder e a afastar um a um (homens, mulheres e crianças) todos os que se encontram entre si e o trono de Inglaterra – para finalmente o vermos também acabar os seus dias na Batalha de Bosworth, a oferecer desesperado todo o seu reino em troca de um simples cavalo para escapar aos seus inimigos.

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Mas independentemente de tudo a BBC já está de parabéns.  Talvez seja uma utopia acreditar num mundo onde as pessoas prefiram ver Shakespeare ao Festival da Eurovisão. Mas a BBC acredita. Contra tudo e contra todos continua a bater-se por fazer serviço público, tentando preservar para as gerações futuras tudo o que sustenta a identidade e a cultura do seu país.

Se houver justiça, a esta série todos os reconhecimentos serão devidos e todos os futuros prémios mais que merecidos.

Livros, leituras e a actual guerra das imagens contra as palavras

Recentemente numa conversa sobre leituras e livros, uma amiga leitora perguntou-me como é que eu pensava conseguir acabar o meu desafio de leitura de 2016 do “Goodreads” (para quem não sabe é uma rede social para amantes de livros), se só estava a ler livros com mais de 500 páginas?

A questão, totalmente inesperada (e descabida), deixou-me francamente surpreendida.
Ingenuamente tenho estado a encarar o desafio do “Goodreads” como um incentivo à leitura e não como uma competição “online” ou como uma meta obrigatória que tenho que cortar no final do ano! Aliás, quando me inscrevi no “Goodreads”, fi-lo com a crença inocente de que esta era uma rede social diferente das outras, para vir a descobrir que afinal, se bem que mais bem disfarçada e politicamente correcta, há também ali uma certa competição social e intelectual, que não é claramente assumida mas que existe – (não só quanto ao número de livros lidos mas também quanto ao tipo de livros que são lidos).

A nossa actual preocupação obsessiva em transmitir uma auto-imagem perfeita e idealizada nas redes sociais está tão enraizada em nós que até uma rede social como o “Goodreads” já padece desse mal .
Não nos chega “photoshopar” as nossas “selfies” para apagar os nossos defeitos físicos e projectar uma imagem superficial física mais apelativa e atraente de nós, também temos que “photoshopar” a nossa personalidade, o nosso currículo, os nossos feitos e as nossas proezas.

A rapidez a que as coisas acontecem nas redes sociais leva-nos a acreditar que só conseguimos ser perfeitos, relevantes e importantes se formos igualmente rápidos a reagir, a opinar, a participar, e a partilhar tudo, tudo o que vemos, temos e queremos ter e ser, sem qualquer reflexão e sem grandes preocupações com o conteúdo ou com a forma como o fazemos. E para sermos ouvidos e relevantes nas redes sociais temos quase  sempre que “gritar”, insultar e desrespeitar a opinião dos outros e fazer prevalecer a nossa.

A constante necessidade de velocidade do mundo actual faz-nos também olhar com falta de interesse e paciência tudo o que seja demorado, difícil, que nos exija esforço, trabalho e seja consumidor de tempo. Estamos a ficar dormentes e formatados para temer e evitar tudo o que envolva parar, observar, reflectir e pensar profundamente as coisas.

(Paradoxalmente a nossa necessidade de quietude, de foco e de concentração está lá, bem presente dentro de nós e não a conseguimos aniquilar facilmente. É ela que nos faz comprar livros de colorir “para adultos” com imagens que pintamos com lápis de cor como se fossemos crianças de 5 anos, precisamente porque a nossa capacidade de concentração está a ficar igual à de uma criança dessa idade. Alguns fazem tricot, outros Yoga, outros escrevem e leem em busca de um certa quietude interior e de um “desligamento” momentâneo que o excesso de tecnologia e informação nos tiraram).

Os nossos”tweets” não podem ultrapassar os 140 caracteres, a actualização constante dos nossos estados no facebook é feita com frases breves e os “emojicons” são quase obrigatórios senão ninguém tem paciência para ler o que escrevemos. Vivemos no tempo da defesa dos “pitchs” de três minutos, dos “soundbites” e das infografias que reforçam a representação visual da informação condensada e esquematizada. Vivemos no tempo em que somos constantemente bombardeados com fotos e mais fotos com uma composição estética semi-profissional e vídeos de 15 segundos no instagram para nos prender a atenção. Os blogs que líamos com prazer vão fechando para dar lugar a contas no “instagram” porque cada vez mais bloggers preferem comunicar através de fotos do que através de palavras.

A pouco e pouco vamos aceitando sem discutir nem reflectir uma coisa que é um pouco triste: a imagem está a tornar-se mais importante que a palavra!

Como muitas outras pessoas quero contrariar isso. Quero “agarrar” o tempo que é tão voraz. Não quero “tweetar” os meus pensamentos nem as minhas opiniões, nem “instagramar” a minha casa, a minha roupa, os meus animais, os meus livros e as minhas meias. Quero estar dias, semanas e meses sem actualizar os meus estados no facebook. Não quero tirar selfies em casas de banho. Não quero ter um vlog, nem quero comunicar exclusivamente através de fotos.

Quero perder-me completamente num livro. Quero ler, pensar e escrever, fundamentar, e argumentar as minhas ideias e opiniões. Escrever só pelo prazer de escrever para tentar passar a paixão e o entusiasmo que as coisas me causam.

Quero ler devagar um livro sem cobranças, sem pressas nem preocupações de estar a ficar para trás no desafio de leitura do “Goodreads”, ou reler um livro do qual tive saudades simplesmente porque me deu na gana e não porque é o bestseller do momento ou o último livro “hipster” que toda a gente está a postar nas redes sociais.
Quero o prazer inexplicável que advém da gratificação adiada de esperar fiel e pacientemente 2 ou 3 anos por uma série de televisão que adoro, ou 4 anos para ver novamente a banda da minha vida.

Não tenho problema nenhum em esperar por uma coisa porque sei que há coisas que obrigatoriamente levam o seu tempo a crescer, a amadurecer, a criar. É perfeitamente normal esperar. (há coisas pelas quais temos que esperar e nalguns casos temos que lutar por elas e temos mesmo que as merecer).

Aceito perfeitamente que o mundo mudou e evoluiu, eu é que já não o consigo (nem quero) acompanhar. Sou imperfeita, feia, inculta, pouco inteligente, pouco sociável, pouco prendada, pouco viajada e nada “cool” num mundo onde pelo menos online, toda a gente é perfeita, bonita, culta, inteligente, sociável, prendada, viajada e muito “cool”.

Ainda assim ninguém me tira a ideia que ler um livro (de 50 ou de 500 páginas) no mundo actual – onde há milhões de distracções visuais a seduzir-nos na forma de séries novas a estrear no Netflix, actualizações constantes dos estados dos nossos amigos no facebook, vídeos novos imperdíveis de gatos fofinhos no Youtube, novos “Memes” hilariantes a serem criados a cada segundo – é um dos maiores actos de rebeldia que podemos ter contra o sistema.