A complexa metafísica transcendente dos zigomas salientes de Benedict Cumberbatch

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(No verão de 2013, durante as filmagens da terceira série de Sherlock o actor Inglês Benedict Cumberbatch estava no auge da fama e da popularidade. Cansado com a atenção dos fãs que acampavam à porta dos locais de filmagens da série e desesperado com as perseguições dos paparazzi que procuravam todas as oportunidades para o fotografar, começou a tapar a cara com folhas de papel tamanho A4 onde escrevia frases implorando-lhes que parassem de o fotografar a ele e que prestassem mais atenção a assuntos importantes que estavam a acontecer no mundo ( como os massacres no Egipto).

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Alguns dias mais tarde, em Agosto de 2013 o parceiro do jornalista Glen Greenwald, David Miranda era detido pela polícia no Aeroporto de Heathrow em Londres durante 9 horas, ao abrigo da lei britânica antiterrorista – “Schedule 7 of Terrorism Act 2000” (o equivalente britânico do Patrioct Act americano) que permite que qualquer cidadão acusado de terrorismo possa ser detido sem uma acusação formal e a sua propriedade privada confiscada – no caso do jornalista, o computador, o telemóvel, pens e hard-drives).
A ilícita detenção do jornalista chocou a opinião pública por se considerar que David Miranda tinha sido vítima de uma injustificada táctica de vingança contra Glen Greenwald (porque este jornalista tinha informações passadas por Edward Snowden e tinha escrito sobre a NSA- National Security Agency e sobre a conivência do governo britânico com o sistema de vigilância global através do serviço de inteligência britânico GCHQ-Government Communications Headquarters.)
Indignado com a detenção de David Miranda, com os abusos de poder sistemáticos e com várias acções repressivas do seu Governo à imprensa livre, Benedict  (que é assumidamente da velha guarda e não está presente em nome próprio em nenhuma das redes sociais mais conhecidas Facebook, Tumblr, Twitter) escreveria à mão uma mensagem de 4 páginas em papel que mostrou aos paparazzi que o perseguiam e onde interpelava directamente os dirigentes do seu país, e culminava na pergunta pertinente:  “Schedule 7: Esta violação das liberdades civis, está mesmo a fazer-nos ganhar a guerra ao terrorismo?”

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Essa hábil utilização da celebridade e da atenção mediática como plataforma para um protesto politico silencioso era duplamente inteligente da sua parte, porque sendo escritas (e não faladas) as palavras não podiam ser distorcidas ou mal citadas nos media, e além disso, quem quer que publicasse as fotos ( imprensa cor-de-rosa, meio de comunicação sério ou site de bisbilhotices) era obrigado a divulgar a sua mensagem.
Quando uma parte da opinião pública reagiu, caindo inevitavelmente em cima de Benedict com críticas de superioridade condescendente e paternalista que o acusavam de ser “apenas um actor que devia estar mas era quietinho” , eu lembrei-me da canção “Samson” que Regina Spektor escreveu sobre o herói bíblico Sansão ( esse cuja força sobre humana se devia ao cabelo comprido) e que por estranhas e misteriosas associações livres da minha imaginação hiperactiva sempre associei a Benedict Cumberbatch:  “You are my sweetest downfall/I loved you first/ Beneath the sheets of paper lies my truth”
E não consegui evitar sorrir.)

Benedict Timothy Carlton Cumberbatch (nascido em Londres a 19 de Julho de 1976) já tinha uma longa e profícua carreira cimentada na televisão britânica, no teatro, e na rádio BBC quando o papel de Sherlock Holmes tornou o seu nome mundialmente conhecido. Consciente da mudança de estatuto que poderia advir do facto de aceitar interpretar um papel dessa magnitude, o actor debateu-se interiormente com essa escolha receando a sobreexposição e a fama. Os seus receios tinham razão de ser. Quando o mundo viu a sua (agora célebre) primeira cena na série “Sherlock” – que mostra o Holmes de Benedict a chicotear violentamente um cadáver que acabara de chegar à morgue do Hospital de Saint Barts, para testar as feridas que apareceriam nas horas seguintes no corpo, porque disso dependia o álibi de um homem – nascia uma estrela.

image Sherlock Holmes

Benedict que perdeu cerca de uma dezena de quilos para interpretar Sherlock Holmes, porque queria que a personagem fosse representativa da ideia “a mente que triunfa sobre a matéria” é um “workaholic”, perfeccionista e um camaleão que se transfigura completamente nas personagens que interpreta, de tal modo que se torna fisicamente irreconhecível.
Antes de Sherlock Holmes já tinha interpretado outro punhado de génios: Stephen Hawking (Hawking, 2004), William Pitt the young (o primeiro-ministro mais jovem da história da Inglaterra, em Amazing Grace 2006), Van Gogh( Painted with words, 2010), e depois de Sherlock Holmes já foi também o génio informático Julian Assange (O quinto poder, 2012), o complexo herói sofrido Christopher Tietjens (Parade’s End, 2012) e o injustiçado matemático Inglês Alan Turing (O Jogo da Imitação, 2014) (aquele que muitos consideram o melhor papel da sua carreira até à data, e com o qual obteve uma merecida nomeação para óscar de melhor actor este ano).

Benedict soube gerir a sua imagem e o “hype” que se criou à sua volta com muita perspicácia. Dono de uma personalidade cativante, de uma inteligência acima da média e de um sentido de humor desconcertante, o actor soube projectar um equilíbrio perfeito entre a dose certa de provocação e timidez, inteligência espirituosa e sentido de humor auto-depreciativo, inacessibilidade e aproximação honesta, e um certo charme britânico inato que o transformaram no menino de ouro da Inglaterra e num estranho fenómeno de popularidade online.
Benedict que nunca fez nenhum papel romântico e está muito longe de se enquadrar nos convencionais padrões de beleza masculinos (a sua cara já foi comparada a um sapato, a um extra-terrestre e a um lagarto) viu-se, para seu grande espanto de uma hora para a outra transformado num símbolo sexual, ideia que ele tentou desencorajar referindo que essa percepção das pessoas não é mais que “um reflexo do seu trabalho”. Com o seu sentido de humor habitual confessou que ele próprio longe de se achar sexy, sempre se considerou muito parecido com o preguiça Sid do filme “A idade do Gelo”, e fisicamente acha-se estranho, esquisito e desproporcional.

Mas esta opinião não é partilhada pelo seu exército de fãs devotas online (dos 8 aos 88 anos) que discutem infinitamente os seus atributos e seguem cada um dos seus passos e que se denominam de Cumbercookies, Cumbercollective e com mais de 123.000 seguidores no Twitter, o mais notório dos seus grupos de fãs denomina-se para grande consternação de Cumberbatch  de ‘Cumberbitches’. (Benedict já disse detestar o termo “bitches” por achar tratar-se de um recuo de vários anos no Feminismo” e já referiu que este termo é para ele inaceitável – ainda que seja utilizado numa palavra inventada em tons de brincadeira em sua honra).
Mas foi toda esta base de fãs, leal, devota e extremamente protectora que o transformou no incontestável namorado da internet. É ela que esgota num único dia,  e 1 ano antes do evento acontecer  os 100.000 bilhetes disponíveis para todas as representações da peça de teatro “Hamlet” de William Shakespeare que será protagonizada por ele, durante os 4 meses (Agosto a Outubro de 2015) em que estará em cena, no teatro Barbican em Londres – tornando-o na produção teatral mais procurada de todos os tempos.
Paradoxalmente, também é esta base de fãs com o seu culto, que cria à sua volta uma loucura e uma histeria tão grandes, e ensurdecedoras que muitas pessoas mais distraídas correm o risco de não se conseguirem aperceber que Benedict Cumberbatch é na sua essência mais profunda um actor sério dotado de um inquestionável talento.

Esse talento viram alguns realizadores como Steven Spielberg quando o escolheu para o elenco do filme “Cavalo de Guerra” (2011), e Danny Boyle na aclamada produção teatral “Frankenstein”(2011) peça de teatro onde Benedict Cumberbatch e o actor Jonny Lee Miller, interpretavam ambos os 2 papéis principais: o Dr. Frankenstein e a sua criatura/monstro, e em cada noite trocavam de papel ora interpretando a criatura, ora o criador, sem que a audiência soubesse qual deles iria ver em qual papel ( ambos receberam largados elogios e prémios pelas suas interpretações).

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Esse talento imparável viu também Sir Tom Stoppard o maior dramaturgo Inglês da actualidade, que durante meses cortejou Benedict timida mas persistentemente para ele aceitar interpretar o papel de Christopher Tietjens quando adaptou a obra literária Parade’s End do escritor Ford Maddox Ford para uma mini-série de tv. Até uma certa altura na sua carreira (não sei se ainda é verdade hoje), de todas as personagens que tinha interpretado, Tietjens era a preferida de Benedict e seria ainda a minha (se não o tivesse visto como Alan Turing). Nunca como nesse papel Benedict tinha sido tão complexo e torturado. Nunca como até aí essas características que o definem como actor foram tão visíveis: a desarmante limpidez no olhar, a insegurança segura, a vulnerabilidade encoberta, a dor da perda e a repressão das paixões e das emoções.

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E depois temos a sua voz. Muito provavelmente a voz masculina mais extraordinária e admirável que se pode ouvir actualmente no cinema e/ou na televisão. Um arrepio sonoro, timbre de barítono profundo,  uma voz aveludada rarissima, belissima e perverssissima a articular todas as promessas e todas as ameaças. Por mais espectacular que seja a visão do actor- e a visão é espectacular- por vezes apetece fechar os olhos e ficar apenas a ouvi-lo.
Por essa voz se encantou o realizador Peter Jackson que o escolheu para encarnar o dragão Smaug na trilogia “O Hobbit” e até J. J. Abrams o realizador americano que perceberá mais de franchises do que de cinema, mas que (provavelmente sem o saber) tomou à letra a frase de Alfred Hitchcock que dizia que “um filme é tão melhor quanto pior for o seu vilão” e o escolheu para o papel de Khan no seu “Star Trek- Into darkness”(2012) – e dizem alguns que viram que Benedict rouba todas as cenas em que entra.

Depois seria Alan Turing – o brilhante matemático inglês, pai da informática, e da inteligência artificial, criptoanalista genial que decifrou os códigos das mensagens das máquinas Enigma alemãs na II Guerra Mundial e a quem o Governo Inglês tratou de forma vergonhosa e indigna e perseguiu pela sua homossexualidade,  forçando-o à castração química e levando-o ao suicídio.

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Benedict leu o argumento, apaixonou-se pela personagem e abraçou carinhosamente o projecto sentindo que tinha que fazer justiça ao intelectual inadaptado. A sua interpretação tem a ternura, o afastamento, e a neurose, a solidão e várias nuances de dor e todas as emoções colocadas com grande delicadeza e utilizados com imensa eficácia e um julgamento admirável, como é habitual em Cumberbatch. Teve o reconhecimento da crítica, e do público e nomeações para todos os prémios importantes da época. Perdeu tudo para o seu amigo Eddie Redmayne (que interpretou Stephen Hawking, este sim um homem tão grandioso que o actor que o interpreta corre o risco de ser confundido com ele).

Em 2016 continuará a espalhar o seu charme obscuro no cinema onde encarnará o herói da Marvel Dr. Strange, e na televisão onde será Ricardo III na BBC 2 e novamente Sherlock Holmes na BBC1 e em Agosto deste ano estará no teatro onde será finalmente o príncipe Hamlet o papel de sonho de qualquer actor e um papel pelo qual ele confessou que esperou a sua vida toda.

Nos muitos anos em que segui a sua carreira vi-o viver dezenas de vidas e morrer outras tantas. Vi-o chorar, rir, dançar e cantar, fazer coisas vergonhosas e coisas sublimes. Vivi as suas paixões e as suas dores, vi-o beijar e lutar. E ele fez-me bem e mal, amar e odiar, chorar e rir. E partiu-me o coração várias vezes. Não sei explicar o que há de tão especial em Benedict Cumberbatch, mas há algo de transcendente e inqualificável que é caracteristico dos grandes actores, uma generosa abertura a todas as possibilidades da vida.

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Nos primeiros dias do verão de 2015, dois anos depois do protesto político silencioso contra o “Terrorist Act” vi outra fotografia sua tirada por um paparazzi e chocou-me a sua expressão resignada e derrotada. Fiquei triste por Benedict Cumberbatch. Tive pena que ele não tivesse nascido actor noutro tempo e noutra época. Talvez tivesse morrido na obscuridade e o seu talento tespiano só fosse testemunhado por um punhado de pessoas num teatro bafiento no West-end londrino. Provavelmente ter-lhe-ia passado ao lado a grande carreira internacional que ele está destinado a ter.
Mas, por outro lado talvez também não fosse caçado como um animal pelos fãs e pelos paparazzi como é hoje em dia.
Talvez não fosse o herói contrariado dessa geração selfie que com a mesma rapidez que o eleva aos píncaros se virará contra ele e o trocará pelo novo “it-boy” no exacto momento em que ele tenha a audácia de não corresponder a alguma das expectativas irrealistas que projectaram nele. Talvez nunca conseguisse o reconhecimento dos seus pares com uma nomeação para os óscares mas também nunca seria obrigado a ver detalhes da sua vida privada -que até ao momento da campanha dos óscares ele sempre tinha guardado com a ferocidade de um leão- escarrapachados nos tabloids ingleses. E pensei outra vez na canção da Regina Spektor:
Samson went back to bed
Not much hair left on his head
Ate a slice of wonderbread and went right back to bed
Oh, we couldn’t bring the columns down
Yeah we couldn’t destroy a single one”

Mas desta vez já não consegui sorrir.

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